Daniel Medeiros*
Fim é uma palavra que, como sabemos, tem dois significados destacados: de algo a ser alcançado, um propósito; e de término, limite, fronteira, game over. Passamos a vida buscando o primeiro significado quase na mesma medida em que fugimos do segundo. Para dar o exemplo padrão: queremos ser felizes mas sofremos com a ideia de que a felicidade acabe.
Esses dias fui visitar meus pais, que estão com 81 e 84 anos de idade. Disse a eles que meu sonho era chegar aonde eles chegaram, nesse tempo de vida tão longo, ainda como um casal, vivendo uma vida digna, lúcida e saudável, na medida do possível. Eles me miraram com um olhar opaco, sentidos com o meu comentário. Depois de um silêncio excessivo, minha mãe disse apenas: “Tenho muito o que viver”.
Freud disse que a principal fonte de nossas neuroses é a perda de uma sensação de plenitude – um sentimento oceânico – que tivemos em algum momento de nossa infância, antes de percebermos o dentro e o fora do mundo, antes de entendermos que os objetos que dão prazer não são partes de nós e que, em algum momento, saem de nosso campo de visão e tornam-se ausentes. Por isso, ensina ele, aprendemos a gritar. E o grito como manifestação humana tornou-se uma expressão da falta, do desamparo com o qual passamos a conviver na nossa existência. Quando alguém grita, é porque algo parece que não vai bem.
No entanto, não fosse essa presença da falta, não teríamos a consciência do prazer – e muito menos desenvolveríamos mecanismo de busca, sofisticando nossas ações no mundo, criando tanta coisa, a ciência, a arte, o esporte e a literatura. O prazer é primo-irmão da carência. A satisfação plena não é um fim desejável, pois torna-se enjoativa. Daí a tarefa humana ser tão desafiadora e complexa. Buscamos um fim até alcançá-lo e, logo depois, a comemoração da conquista rapidamente perde o brilho, pois a sensação de euforia não consegue se manter por muito tempo. O fim que se alcança logo exaure-se em um fim, término. E a busca recomeça.
A religião, segundo Freud, teve a capacidade de reduzir as expectativas dos múltiplos fins a um único fim – a Salvação – e ampliar o objeto a ser amado de um objeto (por vez) para todos – o milagre da multiplicação do amor como paixão para o amor como Ágape – e, com isso, tentar diminuir as tensões entre o fim como objetivo e o fim como término. Da mesma forma, esticou a ideia de vida consciente para além da matéria, tentando solucionar o drama da percepção da decadência dos corpos em uma dualidade que descarta um para manter o outro, o que aceitamos muito mais por desespero do que por convicção e à custa de um encobrimento que nunca é totalmente bem sucedido: o de que o prazer é algo que é próprio do corpo. A alma é insípida. Se é nela que reside a esperança da continuidade, da ausência do fim, para que desejamos alcançar esse propósito? Ele abre a porta para a eternidade de um espaço onde nada nunca mais será feito, realizado. A versão religiosa não compreende que o fim, em si, é só uma desculpa para continuarmos andando, experimentando, inventando novas histórias. Por isso entendo minha mãe e sua sede que não seca. A vida que ela ainda quer viver é a esperança de deixar mais marcas por aí, de conter lembranças de algo, de imprimir assinaturas em atos, de compartilhar pedaços de seus sucessos e, ainda, de cruzar linhas de chegada de aventuras imaginadas. Esse prazer claudicante é o vício que costumamos chamar de vida.
Epicuro lembrava: não há razão de temer a morte, porque a morte não é uma experiência da vida. O risco grave é não viver a vida e suas possibilidades de satisfação, mesmo que provisórias, mesmo que incapazes de encher a taça do desejo. Somos feitos dessa incompletude e não da ideia da perfeição, que é uma armadilha do nosso pensamento. Demócrito, de quem Epicuro era um discípulo entusiasmado, afirmava que o que não tem fim é o movimento dos átomos, que juntam e formam corpos e depois separam-se e desfazem esses corpos. A ideia de vida e morte é, portanto, uma ilusão. Só há a percepção e a memória dela, que formam a consciência de que estamos aqui e agora. Para aproveitar esse minuto. E depois o outro. E além. Até o fim.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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