quarta-feira, 18 dezembro 2024
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Curitiba

O retrato de Pedro Américo

*Daniel Medeiros

Pedro Américo pintou seu quadro mais conhecido cerca de 60 anos depois do “Grito”, e inventou quase tudo o que muitos acreditam ser o momento histórico da independência do Brasil. D. Pedro estava finalizando uma longa viagem de quase 1.400 quilômetros, sobre uma mula, enfrentando longas estradas poeirentas, atravessando rios e subindo serras, desde o Rio de Janeiro até São Paulo. Próximo ao seu destino, recebe uma comitiva enviada por sua esposa, a princesa Leopoldina, uma austríaca culta que governava o país na sua ausência e que conspirava contra o novo governo de Portugal. É provável que D. Pedro tenha sido colhido de surpresa pelas notícias enquanto defecava, placidamente, às margens da picada em meio ao terreno plano próximo ao riacho Ipiranga. Lógico que Pedro Américo, um artista já consagrado, morando na belíssima Florença, não poderia – na verdade, nem lhe passaria pela cabeça – um realismo tão brutal para expressar o nascimento do Brasil Independente. “A realidade inspira, e não escraviza o pintor”, disse ele ao justificar a invenção artística daquela tarde quente e úmida de setembro, com um príncipe enfraquecido pela disenteria, sobre uma mula brejeira, acompanhado por não mais do que dez pessoas, nenhuma delas com os trajes militares pomposos que aparecem no quadro. Curioso que os trajes nem existiam em 1822. Ou seja, a guarda militar que inspirou o presidente Médici, no aniversário do sesquicentenário, a criar uma versão verde oliva da Independência, como se o grito do Ipiranga só fosse possível com a tutoria dos militares ali presentes, protegendo D. Pedro sabe lá do quê, nunca existiu. Ex nunc, diriam os juristas, sobre os efeitos de uma causa nula, de um fato impossível. Mas não entre nós. A independência tornou-se refém de uma versão militarizada, como se na verdade não tivesse realmente havido um rompimento, mas um aprisionamento de suas intenções. E até hoje pagamos por esse capricho de Pedro Américo.

O quadro ficou pronto em 1888, ano já da anemia do Império, abatido por suas próprias contradições e insuficiências e que minguará até morrer de morte matada por uma opereta militar, farsa grotesca protagonizada por um marechal moribundo e furibundo por rancores imperscrutáveis contra o imperador doente. A República nasceu sem povo e vicejou em meio a golpes e quarteladas, primeiro com Deodoro e depois com Floriano, o vice que virou ditador no lugar do presidente que fechou o Congresso. Enquanto isso, os graves problemas herdados do Império ficavam impunes, perpetuando-se pelos interiores e periferias das cidades, com o mesmo olhar espantado e desorientado do homem do carro de boi do quadro de Pedro Américo.

Em 1891, com o Brasil convulsionado pelas diatribes do velho marechal, lá na Europa, o escritor irlandês Oscar Wilde publica o romance “O retrato de Dorian Gray”, que conta a história de um homem que mantém-se jovem e rico enquanto suas misérias e graves pecados vão se acumulando no retrato que mantém escondido em um quarto de seu palácio.

O retrato da independência de Pedro Américo é um Dorian Gray ao contrário. Enquanto o país se perdia em tenebrosas negociatas, golpes e ditaduras, a imagem plácida do jovem príncipe desafiava os fatos, com sua espada em riste, cercado por um cortejo de apoiadores, a maioria também com espadas em punho, para enfrentar os “inimigos da Pátria” e construir uma Nação forte e respeitada pelo mundo. O quadro, um portento de quatro metros de altura por sete de largura, busca aprisionar não o tempo, mas o sonho. Um sonho equivocado.

Hoje, às vésperas de o país completar duzentos anos da Independência, com a data sequestrada por interesses torpes, o quadro de Pedro Américo permanece como um retrato do que fomos capazes de fazer com o nosso passado e somos capazes de fazer com nosso futuro se não nos lembrarmos que a independência é mais do que uma imagem falsa com uma mensagem falsa, mas uma obra por realizar. Com roupas simples, sobre uma mula brejeira, sem escolta de homens armados.

 

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.  @profdanielmedeiros

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