Daniel Medeiros*
O conhecimento de algo dรก-se por suas causas. Nรฃo saber do que algo รฉ feito, de onde veio, quem o fez, como e por qual razรฃo, dificulta, senรฃo impede saber do que se trata. A coisa, cujas causas nรฃo sรฃo conhecidas, รฉ algo que existe em nรณs ou em volta de nรณs como um espectro, e convivemos com ela atribuindo-lhe uma dimensรฃo mรกgica, fruto da nossa imaginaรงรฃo, pois que nossa razรฃo nรฃo a alcanรงa. Como dizia o personagem de Ariano Suassuna, tรฃo gentil e engraรงado em sua ignorรขncia: “Nรฃo sei por que foi, mas sei que foi assim.โ A natureza entรฃo existe por razรตes que nรฃo podemos explicar e nos relacionamos com ela como se vivรชssemos em um sonho delirante no qual as coisas surgem do nada, por nada e para atender a fins que variam de pessoa a pessoa, ocasiรฃo a ocasiรฃo. Se รฉ bom para mim, entรฃo รฉ bom; se รฉ agradรกvel para mim, entรฃo รฉ agradรกvel. Como no Gรชnesis, vamos dando nomes ร s coisas pelo impacto que nos causam. Com o tempo, porรฉm, passamos a crer que se tratam de caracterรญsticas das prรณprias coisas. Uma loucura!
Poucos pensadores foram mais enfรกticos para os riscos dessa imaginaรงรฃo perniciosa das coisas do que Spinoza. Para ele, a superstiรงรฃo era a grande inimiga da liberdade, pois nos aprisiona em um mundo irreal, um mundo de fake news. Para o filรณsofo holandรชs, a principal superstiรงรฃo รฉ a de que todas as coisas agem em funรงรฃo de um fim, que deve ser um fim bom para os bons e mau para os maus, como se Deus, na Criaรงรฃo, tivesse feito tudo em funรงรฃo dos homens e fez os homens, em troca do usufruto de tudo, para que lhe prestassem culto e louvor. E o pior, diz o filรณsofo, รฉ que mesmo que o tempo e a experiรชncia mostrem que as coisas agradรกveis e desagradรกveis ocorrem, indistintamente, aos devotos e aos รญmpios, sem que pareรงa que Deus esteja atento aos que devotam suas vidas a Ele enquanto outros ignoram essa relaรงรฃo de toma-lรก-dรก-cรก, o preconceito e a superstiรงรฃo nรฃo se alteram. Ao contrรกrio, sem respostas para explicar por que inocentes sofrem enquanto pecadores prosperam, o cidadรฃo nรฃo acha saรญda senรฃo afundar-se na ignorรขncia. E responde: โDeus รฉ quem sabe o que faz.โ
E o que leva os homens a essa interpretaรงรฃo tรฃo absurda das coisas, tรฃo contraditรณria? Spinoza nรฃo hesita em responder: โOย medo รฉ a causa que origina, conserva e alimenta a superstiรงรฃo. Os homens sรณ se deixam dominar pela superstiรงรฃo enquanto tรชm medo; todas essas coisas que jรก alguma vez foram objeto de um fรบtil culto religioso nรฃo sรฃo mais do que fantasmas e delรญrios de um carรกter amedrontado e tristeโฆโ
Tristes homens cheios de medo, de afetos tristes que os consomem e dos quais nรฃo conseguem perceber que podem sair se conhecerem suas causas e moverem seus corpos em busca de encontros alegres, que aumentem sua perfeiรงรฃo, que tornem a vida mais interessante e criativa. A saรญda para a vida, dirรก Spinoza, รฉ a prรณpria vida conhecida pelos homens, em sua razรฃo e nada mais. O conhecimento afasta o medo, nรฃo porque ele se dissipa, mas porque esclarece e dรก-nos a chance de enfrentรก-lo ou de aceitarmos sua inevitabilidade.
Essa escravidรฃo dos afetos tristes diminui o homem em sua potencialidade, encolhe-o e priva-o de sua grande qualidade: a racionalidade para compreender e usufruir do mundo. Diz Spinoza: โA superstiรงรฃo, de racionaisย transformam os homens em irracionais, os preconceitosย tolhem por completo o livre exercรญcio da razรฃo e a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados para apagar definitivamente a luz do entendimento!โ
O escravo inventa o tirano, que o comanda, dirige e dele tira a forรงa de seu poder. Incapaz de agir por conta prรณpria, de dar direรงรฃo ร sua prรณpria potรชncia, encruado pelo medo do castigo e do nรฃo cumprimento dos deveres, o escravo รฉ a outra face do tirano. De ontem e de hoje.
A saรญda? A saรญda รฉ perseverar. Ou, como disse Kant, sem saber que seu brado viria ser a mais importante bandeira de luta em um distante paรญs dos trรณpicos:ย Ousa saber!
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros