Um festival para guardar na memória

Festival de Dança de Londrina chega ao fim como um marco do reencontro de artistas e público no pós-pandemia. Edição 2022 teve sucesso de público e trouxe programação que demarcou a potência de corpos diversos

Um festival para guardar na memória
(foto de Fabio Alcover)

Antes de cada um dos onze espetáculos que compuseram a programação artística do Festival de Dança de Londrina 2022, uma vinheta anunciava: “Atenção para um recado importante: não esqueça de levar o espetáculo com você quando cruzar a porta do teatro. Somos um corpo e podemos mais”. Nem precisaria alertar. De 8 a 16 de outubro, o evento semeou pela cidade cenas, pensamentos e ações que ficarão marcados como símbolos de esperança, vida e diversidade em um tempo que ainda carrega os traumas da pandemia e da cultura de morte. O Festival terminou neste domingo (16) consolidando sua importância na agenda cultural da cidade.

Além dos espetáculos de diferentes modalidades de dança e teatro – que em praticamente todos os dias lotaram o Teatro Ouro Verde e a Divisão de Artes Cênicas da Casa de Cultura (DAC) da UEL – seis oficinas realizadas na Funcart tiveram suas inscrições, via de regra, esgotadas em pouco tempo. Ao longo dos nove dias, o público teve a oportunidade de se emocionar e de aprender com artistas de primeira grandeza, chegando ao final com a certeza de que a arte é tão essencial quanto o ar que respiramos. Este  mesmo ar que a tantos faltou no período da História que vivemos recentemente e que impediu, nos últimos dois anos, que o evento acontecesse no formato presencial.

Portanto, além de importantes números – cerca de 6 mil pessoas assistiram aos espetáculos e outras 180 participaram das oficinas -, a edição 2022 do Festival de Dança será lembrada como uma celebração ao convívio e à empatia. Foram dias sob o signo da emoção, com o fenômeno dos teatros lotados novamente e inúmeras cenas de delicadeza, como a das flores nas mãos do público – um presente do Festival na cerimônia de abertura – e a chuva de margaridas recebida pelos bailarinos da Clarin Cia. de Dança nesta mesma noite. As imagens não se restringiram aos presentes no teatro, mas viralizaram nas redes sociais, em um movimento que espalhou em níveis imponderáveis a sensibilidade da arte no contexto de brutalidade do presente.

Um festival para guardar na memória
(foto de Fabio Alcover)

O Clarin, grupo formado por jovens dançarinos e dançarinas da periferia de São Paulo e Rio de Janeiro, se apresentou com a montagem “ou 9 ou 80”, inspirado em duas ações policiais que chocaram o País em 2019 – a que resultou em nove mortes em Paraisópolis, São Paulo, e nos 80 tiros disparados contra o carro de uma família em Guadalupe, Rio de Janeiro, tirando a vida de um músico.  Ao  abordar o tema da violência urbana e da ressignificação da vida por meio da dança e do ritmo do funk, a montagem arrancou lágrimas e um longo aplauso da plateia, que entregou aos bailarinos as flores carinhosamente distribuídas pela produção do evento.

A cena inesquecível foi só o começo de um festival de curadoria primorosa, assinada por Danieli Pereira e Renato Forin Jr.  No segundo dia, o evento brindou o público com uma das artistas mais festejadas mundialmente. A atriz paranaense Denise Stoklos trouxe seu espetáculo “Abjeto-Sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos” e mostrou que um corpo aparentemente frágil nos seus 72 anos pode se agigantar no palco, e que palavras e gestos precisos podem nos marcar para sempre. Àquela altura, o público já sabia a resposta à  pergunta “o que pode um corpo?”, que guiou toda a programação artística e didática do Festival.

Mas a confirmação viria no dia seguinte, com Jéssica Teixeira, performer de Fortaleza (CE), nos conduzindo a necessárias reflexões sobre os corpos que subvertem padrões, evocando questões como beleza, saúde, política, feminilidade e acessibilidade, no belíssimo solo “E.L.A.”, que arrebatou quem ali estava. O espetáculo foi um marco na história do evento, por contar, pela primeira vez, com acessibilidade por meio de audiodescrição e Libras (Língua Brasileira de Sinais), recursos utilizados também na apresentação de “Olhos nos Olhos”, do grupo Boca de Baco. Neste, chamou a atenção a inusitada presença na plateia de Nico. Era a primeira vez que um cão-guia acompanhava seu dono, o professor de informática Alef Garcia, em um espetáculo de teatro na cidade de Londrina.

Pratas da casa –  A arte local teve espaço garantido na programação. Na tradicional mostra “Dança Londrina”, que  reuniu mais de uma dezena de grupos formados por bailarinos independentes ou amadores e escolas de dança da cidade, e nos espetáculos “Olhos nos Olhos” e “Outros”, da Cia. Nua, o público pôde conferir a qualidade dos trabalhos aqui desenvolvidos. Também as crianças foram contempladas no Festival, com a divertida montagem “Mirabolante”, da Confraria da Dança, de Campinas (SP), que se apresentou no dia 12. O espetáculo trouxe a história dos antigos carnavais e transformou o Teatro Ouro Verde em uma deliciosa matinê, com direito a bonecão passeando pela plateia e muita serpentina no final.

Previsto inicialmente para acontecer na Concha Acústica e transferido para o Ouro Verde em função da instabilidade climática, o show gratuito “Grigri Ba”, com o grupo Höröyá (Brasil-Senegal), foi um acontecimento à parte. O som contagiante de instrumentos tradicionais africanos, como ngoni, dunun, djembe, balafon, krin, sabar e tama, acompanhados dos brasileiríssimos atabaques, berimbaus e cuíca, e dos contemporâneos baixo, guitarras, saxofones, trombones e trompetes, não deixou ninguém parado na plateia. A excelência do trabalho do grupo, capitaneado pelo compositor, arranjador e percussionista André Piruka, arrancou demorados aplausos de todos que assistiram à apresentação e provocou uma enxurrada de elogios nas redes.

No segundo final de semana do Festival, outros três grandes espetáculos ocuparam o palco do Teatro Ouro Verde. Um deles trouxe as montagens “Music, Body and Soul” e “Caminho da Seda”, da Raça Cia. de Dança, de São Paulo, revelando por que o grupo é uma referência na linguagem do jazz no Brasil. Ambas integram o projeto “Raça, por elas”, uma homenagem a mulheres criadoras na dança, sob direção geral de Renan Rodrigues, e deixaram o público extasiado por sua beleza.

Estreia festejada –  No sábado (15) a aguardada estreia da nova montagem do Ballet de Londrina, “Bora!”, foi responsável por mais uma cena que há muito não se via na cidade: filas imensas se formaram Calçadão afora em frente ao teatro, que teve todos os seus quase 800 lugares ocupados para a apresentação. No palco, a companhia oficial da cidade, pela primeira vez coreografada por um artista externo – Henrique Rodovalho, diretor da Quasar Cia. de Dança e um dos nomes mais reverenciados da dança brasileira atual -, retribuiu com uma montagem contagiante, embalada pela música eletrônica do compositor japonês Aoki Takamasa e do multiartista português Komet. “Bora!” nos leva a questionamentos sobre a fragilidade das relações humanas no século XXI, entre o desejo de pertencimento e a necessidade de manter a integridade individual.

“Tempestade” e “V.I.C.A.”, duas montagens do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, fecharam a programação artística do Festival e mais uma vez, com o teatro lotado, os londrinenses demonstraram seu desejo, por tanto tempo represado, de convívio e de contato presencial com a arte.  O  coreógrafo e diretor Mário Nascimento, responsável por “Tempestade”, e Liliane de Grammont, de “V.I.C.A.”, trouxeram, respectivamente,  espetáculos com grande carga de sentidos e significados capazes de nos remeter ao temido fenômeno da natureza – que tem ao mesmo tempo um grande poder de destruição, mas também de tornar possível o renascimento – e uma reflexão da importância da coletividade como estratégia para vencer desafios.

Depois desta “primavera” proporcionada por grandes espetáculos e oficinas, o Festival de Dança 2022 retorna em dezembro com uma extensão para comemorar o aniversário de Londrina. Será uma programação especial com talentos locais, mostrando a potência que a arte do movimento ganhou na cidade a partir dos esforços de tantos profissionais e dos incentivos público e privado. Mais informações e a data do espetáculo serão divulgadas posteriormente nas redes e no site oficial do evento.

O Festival de Dança de Londrina 2022 é apresentado pela Copel, por meio do PROFICE (Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura da Secretaria de Estado e Comunicação Social e Cultura), com base nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e tem patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de Londrina, por meio do PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura). O Festival é uma realização da APD (Associação dos Profissionais de Dança de Londrina e Região Norte do Paraná), com apoio institucional da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Conta ainda com o apoio cultural do Hotel Crystal e Rádio UEL FM.

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