Fernando Borges Mรขnica*
A recente suspensรฃo judicial dos efeitos da Lei n.ยบ 14.434/22, que estabeleceu o piso nacional dos profissionais da enfermagem, gerou menos indignaรงรฃo com o Supremo Tribunal Federal que era esperado. Por quรช?ย
A resposta รฉ simples. Desde as primeiras aulas, os alunos de Direito aprendem que as regras jurรญdicas (mundo do โdever serโ) nรฃo sรฃo capazes de alterar, por si, dados da realidade (mundo do โserโ). Nรฃo รฉ possรญvel que o Congresso Nacional revogue a lei da gravidade.
Isso ocorre porque o Direito se dirige ร conduta humana, por meio de comandos e incentivos que direcionam o comportamento de indivรญduos, empresas, ONGs e governos. Mas, mesmo as normas de comportamento, encontram barreiras ร sua observรขncia. Nรฃo รฉ possรญvel que o Congresso Nacional determine que as pessoas desobedeรงam ร lei da gravidade.
Nรฃo por outro motivo, as determinaรงรตes legais voltadas ao poder pรบblico submetem-se a assim denominada โclรกusula da reserva do possรญvelโ. Segundo tal teoria, a inexistรชncia comprovada de condiรงรตes materiais, financeiras e orรงamentรกrias รฉ capaz de justificar o descumprimento estatal de deveres voltados ร concretizaรงรฃo dos direitos sociais.
Tal condicionamento foi parcialmente observado no piso da enfermagem. Isso porque a Lei n.ยบ 14.434/22 apenas produzirรก efeitos aos servidores pรบblicos apรณs a adequaรงรฃo da legislaรงรฃo orรงamentรกria de cada ente federativo. ร o que determina a prรณpria Emenda Constitucional n.ยบ 124/22, que previu a instituiรงรฃo do piso.
O problema, contudo, nรฃo foi resolvido para os profissionais de enfermagem que sรฃo vinculados a entidades beneficentes de assistรชncia social e organizaรงรตes sociais. Esse setor รฉ responsรกvel por cerca de 60% dos procedimentos de mรฉdia e 70% dos procedimentos de alta complexidade no paรญs. E, assim como os servidores pรบblicos, depende do repasse de recursos orรงamentรกrios da Uniรฃo, dos Estados e dos Municรญpios.
ร dizer: a maior parte dos profissionais que prestam serviรงos ao SUS depende tambรฉm de conduta do poder pรบblico, que precisa realizar as adequaรงรตes contratuais, orรงamentรกrias e financeiras necessรกrias ao aumento do repasse de recursos ao setor filantrรณpico e sem fins lucrativos.ย
A decisรฃo do STF afastou temporariamente o risco econรดmico, social e sanitรกrio decorrente do iminente colapso do SUS. Ao estabelecer prazo para que os atores envolvidos apresentem propostas de soluรงรฃo do impasse, o STF impรดs aos poderes de Estado a tarefa de adequar ร realidade, de modo a tornar possรญvel atender ร nova previsรฃo legal. Mas o problema do SUS nรฃo se restringe ao piso: somos o maior sistema universal de saรบde do mundo e contamos, paradoxalmente, com o menor gasto per capita em saรบde pรบblica do globo.
Com apoio do STF, o SUS sobreviveu e fez-nos sobreviver ร maior pandemia da histรณria. Que a decisรฃo sobre o piso da enfermagem impulsione uma discussรฃo profunda e honesta acerca do grave problema do financiamento da saรบde pรบblica no Brasil. Para o bem dos profissionais da enfermagem e do SUS, o que menos precisamos neste momento รฉ de mais uma soluรงรฃo improvisada, paliativa e inconsequente.
*Fernando Borges Mรขnica รฉ doutor em Direito pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP).