A mutualidade do prazer

Ocir Andreata*

 

Fisiologicamente, apesar da consagrada igualdade entre gรชneros hoje, a compreensรฃo do orgasmo passa inevitavelmente pelo reconhecimento de naturezas biolรณgicas opostas e complementares entre os corpos de homens e mulheres. A complexidade de elementos, subjetivos e objetivos, e o alcance de gozo do orgasmo feminino, fazem do orgasmo masculino um instante falho e pรญfio, quanto mais este se vincula ao ato ejaculatรณrio. Tanto pior numa ejaculaรงรฃo prematura. Nessa analogia, o orgasmo feminino รฉ reflexo psicofรญsico que se abre de continuum a um gozo de prazer crescente atรฉ ao limรญtrofe do descontrole emocional; o orgasmo masculino, ao contrรกrio, um processo psicofรญsico de fechamento e fim de um ciclo de excitaรงรฃo, cuja tensรฃo exige descarga e resoluรงรฃo (repouso) logo apรณs a ejaculaรงรฃo. Nesse sentido, o orgasmo feminino รฉ rico e o masculino pobre. Na verdade, o gozo รฉ feminino; o homem, no mรกximo, goza de dar gozo.

Psicologicamente, o pai da psicanรกlise, Freud, buscando descrever e explicar o fenรดmeno da sexualidade, falou pouco do termo orgasmo, mas sua tentativa de uma concepรงรฃo psicofisiolรณgica do prazer ligava o desejo, a excitaรงรฃo e o orgasmo como uma psicodinรขmica de geraรงรฃo energรฉtica, compressรฃo e descarga. Imagem tomada, porรฉm, sempre do ponto de vista masculino. E, desconhecendo ainda a extensรฃo anatรดmica e a funรงรฃo do clitรณris, pensa o sexo feminino pela analogia da castraรงรฃo e cria o indevido mito do orgasmo critoriano como prematuro ou infantil e o suposto orgasmo vaginal como maduro ou adulto. Nada mais equivocado. Sabemos que o clitรณris รฉ um รณrgรฃo altamente inervado e exclusivo do prazer, e que faz uma funรงรฃo subjetiva do orgasmo.

Historicamente, o sociรณlogo inglรชs Anthony Giddens observou no fenรดmeno social e relacional crescente desde meados do sรฉc. XX que, apรณs dรฉcadas de revoluรงรตes culturais, o prazer entra definitivamente na agenda das relaรงรตes pessoais, afetivas e sociais. Gradualmente, as relaรงรตes afetivas mรบtuas passam a ser organizadas e pactuadas em torno da busca de prazer. As vรกrias formas cada vez mais democrรกticas de prazer, que exigem o orgasmo, formam novos laรงos afetivos e de famรญlias, que tambรฉm facilmente se desfazem frente ao nรฃo mais prazer. Desejo, prazer e orgasmo tornam-se sinรดnimos de uniรฃo conjugal โ€“ hetero, homo ou poliamor.ย 

Nas duas รบltimas dรฉcadas observa-se o que chamo paradigma Tinder-Pornรด (Tinder, รญcone da facilidade de acesso ao sexo; Pornรด, imagem padrรฃo do erรณtico), ainda que performรกtico e distorcido, incrementado pela adiรงรฃo de brinquedos erรณticos e terceiros na cama, complicando ainda mais as relaรงรตes pactuais. Hรก uma revoluรงรฃo sexual em curso e uma sintomatologia em demanda. A atual sociedade do gozo nรฃo quer abrir mรฃo do orgasmo, mas tambรฉm este comeรงa a se perder, na medida em que o sexo orgรกstico se torna comum e banal, em que o masculino entra em crise frente ร  potรชncia de gozo da mulher livre, e na medida em que a defesa se desloca para o novo sintoma do nรฃo-desejar da nova assexualidade.ย 

Entretanto, a partir da experiรชncia clรญnica e retomando a observaรงรฃo de Wilhelm Reich, pai da revoluรงรฃo sexual cultural, parece haver de fato uma funรงรฃo do orgasmo, enquanto formaรงรฃo de vรญnculo afetivo e รฉtica relacional da parceria, hetero ou homossexual. Se a atual evoluรงรฃo social da sexualidade orgรกsmica exige a manutenรงรฃo do nรญvel de prazer na relaรงรฃo, em cuja ausรชncia facilmente se rompe, tambรฉm se nota que o orgasmo รฉ a amรกlgama de gozo que mantรฉm o laรงo afetivo. Logo, gozar a dois รฉ preciso e necessรกrio, cada vez mais, para se habitar num ninho familiar. O que Reich pensava como โ€œpotรชncia orgรกsticaโ€ era um laรงo de relaรงรตes afetivo-sexuais mutuamente prazerosas de forma contรญnua a formar um campo bioenergรฉtico vital. Relaรงรตes, tanto quanto possรญvel, de mutualidade amorosa, carรญcias, carinho e alteridade.

Qual รฉ, entรฃo, a funรงรฃo social do orgasmo? A manutenรงรฃo social da relaรงรฃo. Na relaรงรฃo se mantรฉm o sentido do afeto prazeroso, cuja qualidade de vivรชncia se torna em amor. No amor se mantรฉm a conjugalidade e a parentalidade familiar. Certamente, o amor รฉ uma qualidade da relaรงรฃo afetiva, a qual, como vimos, exige prazer. Em termos sexuais, o vรญnculo do prazer รฉ o orgasmo. Portanto, o orgasmo tem a funรงรฃo social da manutenรงรฃo da relaรงรฃo. Neste sentido, hรก uma รฉtica do orgasmo que exige a mutualidade de prazer, tanto livre quanto respeitoso. Mais que nunca รฉ preciso gozar muito e junto.

*Ocir Andreata, psicoterapeuta e sexรณlogo, professor e coordenador da pรณs-graduaรงรฃo em Sexualidade Humana da Universidade Positivo (UP).

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