A visita do fantasma

Daniel Medeiros*

 

O pai trabalhava em turnos e por isso, vรกrias vezes, passava as noites fora de casa. Ficava a mรฃe e as duas crianรงas pequenas, mais a cachorrinha que podia entrar em casa. A outra, um gigante de pelo preto, quase desaparecia no fundo do quintal enorme e sem iluminaรงรฃo. Mesmo a mรฃe, quando ia lรก, antes gritava o nome dela: Black! Black! ย E sรณ se adiantava quando ouvia os latidos e via o rabo enorme e peludo abanando por reconhecer o cheiro da dona.

A casa era antiga, construรญda pelos estadunidenses por ocasiรฃo da guerra e, depois, transformada em vila militar para os sargentos e suboficiais. O pai era, na รฉpoca, segundo sargento, e a mรฃe cuidava da casa, dos bichos e de nรณs. Como tudo era muito antigo, as portas rangiam, as paredes estalavam, os morcegos faziam ninho no forro, os cassacos – uma espรฉcie de gambรก pelado, horrรญvel, parecia um rato gigantesco – invadiam o quintal em busca das frutas caรญdas no chรฃo e a cachorra corria atrรกs deles latindo ferozmente, acordando as galinhas, as pombas e os gansos que criรกvamos para depois vender na feira dos animais e engordar um pouco a minguada receita familiar.

De dia, tudo era colorido e barulhento. De noite, assustador. A rua que passava ao lado da casa estendia-se atรฉ a boca de uma enorme favela que permeava a vila militar em quase toda a sua extensรฃo. E tambรฉm alguns de seus moradores gostavam de escalar o muro de esquina da nossa casa para verificar se havia algo de valor nos varais ou esquecido no amplo quintal de terra batida. Uma estranha rivalidade entre pobres e muito pobres,ย  desconfiados uns dos outros, espreitando uns aos outros, esperando a oportunidade para tirar o que custou caro para nรณs mas que era inalcanรงรกvel para muitos deles.

Quando o pai saรญa, a mรฃe fechava as janelas, trancava a porta dos fundos e colocava uma madeira na maรงaneta para evitar que forรงassem a entrada. Eu me imaginava dentro do forte apache, preparando as defesas contra o ataque dos รญndios ferozes. A porta da frente era de duas folhas, frรกgil, um empurrรฃo e a fechadura antiga nรฃo resistiria. A รบnica proteรงรฃo eram as preces de minha mรฃe, para tantos santos que nunca conseguia decifrar inteiramente os seus murmรบrios. Quando o pai estava em casa, ele encostava uma cadeira na porta da frente e colocava panelas na cadeira, para ser alertado caso alguรฉm forรงasse a entrada. A mรฃe nรฃo fazia isso, era inรบtil, afinal, o que poderรญamos fazer alรฉm de morrer de susto antes de morrer pelas mรฃos dos bandidos?ย 

O mais terrรญvel, porรฉm, era quando estรกvamos sรณ nรณs trรชs e resolvia chover e relampejar. As madeiras entรฃo cantavam alto, batiam ferozmente, o telhado reverberava as gotas em um ribombar que nos deixava em pรขnico. A mรฃe nos reunia na sala, ligava a televisรฃo preto e branco e tentava nos distrair fazendo comentรกrios sobre as personagens das novelas, brigando com os vilรตes ou comemorando o beijo da mocinha e do mocinho.ย 

Certa vez, a pequena cachorra que dividia conosco esses momentos de angรบstia, mirou um canto da sala e comeรงou a latir de forma estridente, olhando vรกrias vezes para nรณs como que para avisar-nos de um perigo iminente. Eu e meu irmรฃo nos encolhemos em nossas cadeiras de plรกstico tranรงado, tentando diminuir o mรกximo possรญvel para nรฃo sermos notados. Esse era o maior dos temores, mas nem os cassacos, nem os morcegos, nem os meninos da favela, nem o bandido capaz de invadir a casa pela porta da frente, nada rivalizava com os espectros ancestrais da casa de quase cinquenta anos.ย 

A mรฃe, lentamente, baixou o volume da televisรฃo, pegou a cachorra no colo – a cauda e as orelhas baixas, sem deixar de latir um sรณ instante – e disse, numa calma fingida: se รฉ do bem, vem, nรณs te recebemos em paz.ย 

Dali a pouco, a chuva foi amainando, os barulhos no teto diminuindo, a cachorra enrodilhou-se debaixo da poltrona da mรฃe e ela voltou para a sua novela, fazendo seus comentรกrios, enquanto eu, com o pescoรงo doendo, fixava meu olhar no extremo oposto do canto da sala, esperando que, em um momento qualquer, aquilo que a cachorra vira, aparecesse para nรณs, subitamente, atacando-nos pelas costas. Mas nรฃo hรก medo que venรงa o sono de uma crianรงa e nรฃo recordo como a noite terminou, sรณ que amanheci em minha cama, minha mรฃe valente preparando as coisas para o cafรฉ.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros

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