Pessoas

Daniel Medeiros*

 

Hรก algum tempo, a questรฃo sobre como nominar os indivรญduos nas suas muitas diferenรงas jรก tem uma saรญda: tratarmo-nos como pessoas. Penso que รฉ desta forma que os documentos deveriam registrar a todos, sem distinรงรฃo de qualquer natureza. Apenas com a manifestaรงรฃo da obviedade de nossa condiรงรฃo. Somos pessoas. Tudo o mais sรณ รฉ relevante em face de circunstรขncias concretas. A evocaรงรฃo da idade deveria ocorrer apenas para definir os direitos ou as obrigaรงรตes, como as que resguardam as crianรงas e os idosos, como, por exemplo, a preferรชncia nos caixas de supermercado ou nas vagas de estacionamento, ou a indicaรงรฃo para entrar no cinema ou em um show, ou ainda a proibiรงรฃo de ingerir bebida alcoรณlica ou comprar cigarros; a nominaรงรฃo da massa corporal – que comumente, desafiando a Fรญsica, chamamos de peso – sรณ deveria importar para garantir a seguranรงa em elevadores ou outros aparelhos, ou no consultรณrio mรฉdico; a de altura, para prevenir acidentes; a de fenรณtipo, para garantir as vagas nas universidades e outros cargos pรบblicos, compensando as deficiรชncias histรณricas e a naturalizaรงรฃo do preconceito, enquanto eles existirem; a de sexo, para efeito de delimitaรงรฃo da jornada de trabalho ou do tempo da aposentadoria; a de qualquer deficiรชncia fรญsica ou intelectual, para indicar a necessidade/obrigaรงรฃo de agentes pรบblicos e empresas privadas garantirem maneiras compensatรณrias de assegurarย  a essas pessoas a plena capacidade de exercรญcio da cidadania; a de gรชnero, para respeitar a forma como a pessoa quer ser identificada socialmente. E assim por diante.

Nossa sociedade รฉ fortemente marcada pela presenรงa fantasmรกtica da escravidรฃo. Alguns indivรญduos creem, piamente, que sรฃo superiores a outros, em direitos e em benefรญcios. Mas nรฃo creem ser superiores apenas no que diz respeito a ter privilรฉgios. Esses indivรญduos nรฃo admitem que certas benesses da modernidade sejam popularizadas e veem isso como um sinal de decadรชncia, de destruiรงรฃo de um modelo de sociedade organizada em torno dos valores que se identificam com seus direitos e benefรญcios. Como o roteiro do filme โ€œE o vento levouโ€. Um filme que todos deveriam assistir para entender o que รฉ uma sociedade marcada pelo preconceito. Nรฃo que nรฃo existam tantos outros exemplos mais atuais, presentes em tantos momentos de nossa vida cotidiana. Mas esse clรกssico da filmografia hollywoodiana รฉ uma oportunidade รญmpar de enxergar o รณbvio.

Pois bem, essa sociedade, formada por esses indivรญduos horrรญveis, vem se fortalecendo, alimentando-se do debate em torno da forma como pensam que deverรญamos chamar as pessoas, inclusive alterando regras gramaticais bรกsicas, com o intuito de incluir os diversos tipos de como as pessoas se identificam cultural e socialmente, procurando identificรก-las uma a uma, em um leque amplo, com nominaรงรตes que envolvem letras e termos e mudanรงas na grafia e sรญmbolos e imagens e toda a forma de caracterizaรงรฃo.

Isso contribui para que os grupos de extrema direita nรฃo precisem mais procurar convencer os incautos de que eles defendem uma sociedade de privilegiados, que sรฃo contra a universalizaรงรฃo dos direitos, que acham que mulheres valem menos do que os homens e que a arte e a cultura devem se dobrar a tradiรงรตes ditadas por eles e que a educaรงรฃo deve excluir tudo o que nรฃo se enquadra na moral racial, sexista e elitista deles. Basta que eles falem do โ€œperigo para a lรญngua portuguesaโ€ ou da โ€œdefesa das atletas diante da invasรฃo das pessoas transโ€ ou โ€œdo perigo da exposiรงรฃo das criancinhas nas escolas e nas ruasโ€ ou ainda do absurdo dos โ€œbanheiros comuns” ou mesmo โ€œde como o mundo estรก ficando chato com o politicamente corretoโ€, para garantir a legiรฃo de seguidores que eles tรชm e que sรณ aumenta.

Talvez devรชssemos repensar nossa estratรฉgia, nรณs que somos pessoas que acreditamos em uma democracia real e efetiva, com direitos para todos, sem distinรงรฃo de qualquer natureza. Talvez devรชssemos iniciar um movimento para desarmar o discurso catastrofista deles – e que caiu no colo desses truculentos como um presente dado por nรณs – passando a defender a igualdade de chamar a todos de pessoas ao invรฉs da busca por distinguir cada um de acordo com sua maneira peculiar de ser e estar no mundo. E defender que qualquer tentativa de limitaรงรฃo dos direitos de qualquer pessoa seja considerada uma violaรงรฃo ao sagrado preceito democrรกtico, fundamento do funcionamento da sociedade como um todo. Nรฃo preciso dizer que sofro de gordofobia ou etarismo, ou de que alguรฉm sofre de sexismo ou racismo. Isso a lei diz. Quando isso acontece, somos afetados em nossa condiรงรฃo integral de cidadรฃos, composta por direitos – e umas tantas obrigaรงรตes – que independem de nossas particularidades para gerarem o dever de punir o agressor. Ao exigir que se diga assim ou assado, que se use este ou aquele pronome, que se utilize esse ou aquele termo, dividimo-nos enquanto eles se unem. Enfraquecemo-nos enquanto eles se fortalecem. Aumentamos nossa chance de perder. E, se eles ganharem, nรฃo serรก apenas o โ€œtodes” que desaparecerรก do mapa. Muita gente de carne e osso tambรฉm.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.

@profdanielmedeiros

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