Diga-me o que lês e te direi quem és

Candice Almeida*

O filme “O Leitor” retrata um relacionamento entre uma mulher que trabalhava [alerta de spoiler] para a SS (polícia nazista) e um estudante de Direito. A história é linda. O protagonista, ainda menino, conecta-se com a amada através da alma, passando tardes lendo em voz alta livros para ela. Anos depois, ele a reencontra em um julgamento por crimes de guerra cometidos pelos nazistas. Hanna é uma das rés e foi condenada à prisão perpétua por sua responsabilidade na morte de dezenas de prisioneiros judeus e por, supostamente, ter escrito um relatório que pesou na decisão do juiz.

O detalhe é que Hanna era analfabeta. Recusou-se, porém, a revelar esse segredo, ainda que o fato pudesse livrá-la da cadeia. Para ela, o encarceramento era menos vexatório do que o déficit de cidadania. Diga-se de passagem que ela era inocente. Se leio, existo. Imagino que essa fosse a máxima cartesiana que ela adotava.

Esse filme me veio à mente após ler a notícia de que o Brasil está na 39.ª posição – entre 43 países – em um exame internacional que mede a habilidade de leitura. Isso significa que alunos de 9 e 10 anos de idade não conseguem compreender de modo satisfatório um texto ou entender a relação entre as ideias. E, logicamente, estão longe de desenvolver um senso crítico. Apenas 13% dos estudantes brasileiros são classificados como proficientes. Estamos atrás de países como Azerbaijão e Uzbequistão.

Não faz muito tempo, um youtuber de grande influência entre as crianças e adolescentes defendeu que a obrigatoriedade de leitura dos clássicos nacionais no Ensino Médio faz com que os alunos achem a literatura “um saco”. Nas palavras dele, trata-se de um desserviço da escola. No entanto, o buraco é mais embaixo. Um público leitor não se forma apenas na adolescência. Como a pesquisa demonstra, perdemos leitores ainda na infância.

O ponto aqui é o imenso potencial que a leitura tem para o desenvolvimento de um povo e do indivíduo. Descobrimos quem somos por meio do que lemos. Descobrimos quem já fomos pelo que foi lido. Ao longo da nossa existência, vamos nos construindo e nos apoiando na literatura. Descobrimos quem queremos ser por meio das leituras pretendidas. A leitura é o efeito, não a causa. A curiosidade é a raiz. Você é o que lê. E quando digo isso, é em um sentido amplo, pois não se trata apenas de ler livros, mas, sobretudo, também de ler a realidade à nossa volta.

Para incentivar seu filho a ler, conte a ele o que aconteceu com Vini Jr. O crime do racismo pode ser evitado com a leitura. Compartilhe com ele a pergunta do ano: “Você quer falar sobre futebol?” e explique a derrota de Carlo Ancelotti e do mundo todo. Quer incentivar seu filho a ler? Conte algumas supostas anedotas de Leo Lins, sobretudo aquelas voltadas para o escárnio com as minorias. A ignorância pode ser combatida com a leitura. Quer um filho leitor? Valha-se de George Orwell para que ele entenda como funciona uma nação autoritária, assim ele também saberá que Big Brother é muito mais que um programa de TV. Mostre a ele o jogo de vídeo game ‘Devil May Cry’ e explique que a narrativa e o protagonista Dante foram inspirados no livro ‘A Divina Comédia de Dante Alighieri’. Ou seja, quem criou o jogo leu Dante. É por meio do conhecimento que a percepção de estupro, assédio e múltiplas violências se desenvolve. Um filho leitor sabe se proteger do mundo e, mais ainda, sabe transformar o mundo. Sabe mudar consensos e preservar o meio ambiente.

A leitura mitiga o preconceito e enaltece a diferença. O conhecimento faz milagres. Diga-me o que lês e te direi quem és.

Hanna não se entendia como ninguém.

*Candice Almeida, professora de Redação do Colégio Positivo e assessora pedagógica de Redação no Centro de Inovação Pedagógica, Pesquisa e Desenvolvimento (CIPP) dos colégios do Grupo Positivo.

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