A ameaça Houthi: estamos prontos para voltar para a era do fax?

João Alfredo Lopes Nyegray*

 

O sociólogo espanhol Manuel Castells tornou-se conhecido por sua ampla análise das redes de comunicação e de sua influência na sociedade contemporânea. Em sua trilogia “A Era da Informação”, Castells examina como a revolução digital e a globalização econômica reconfiguraram as estruturas sociais, políticas e culturais. Ele destaca a ascensão das redes de comunicação digitais como um novo paradigma de organização social, que conecta e molda comunidades em escala global.

De uns anos para cá, a tecnologia acabou também no centro de disputas internacionais, refletindo as dinâmicas de poder, economia e cultura em escala global. É fato que a dependência internacional da tecnologia e das telecomunicações é um reflexo da nossa atual realidade interconectada, moldada pela globalização e pelo avanço tecnológico.

É justo quando estamos tão dependentes de cabos e satélites que não vemos, é justo quando países competem de forma cada vez mais acirrada por preponderância tecnológica, e quando a sociedade já está absolutamente permeada pelos efeitos do contato constante com meios tecnológicos que uma situação geopolítica distante ameaça drasticamente o trânsito global de dados, informações, vídeos e vozes: os Houthis do Iêmen.

Os Houthis, também conhecidos como Ansar Allah (Partidários de Deus), são um grupo rebelde xiita do Iêmen, originários da região do Saara, no norte do país. O movimento surgiu na década de 1990, se opondo ao governo de Sanaã, que considera corrupto e controlado por grupos estrangeiros. Desde então, os Houthi têm lançado uma série de insurgências armadas contra o governo iemenita, resultando em conflitos que se arrastam há anos.

Recentemente, e em especial após o início dos ataques do Hamas a Israel, os Houthi estão atacando navios que transitam pelo Mar Vermelho, no que afirmam ser uma vingança contra Israel pela sua campanha militar em Gaza. Por isso, as maiores companhias marítimas e petrolíferas do mundo deixaram de transitar na região. Navios que partiam da Ásia para a Europa e buscavam atravessar o canal de Suez, no Egito, hoje optam por uma rota muito mais longa, contornando a África. Pelo Mar Vermelho, onde os Houthi vêm atacando sistematicamente embarcações variadas, passam cerca de 12% do comércio global.

Em resposta aos ataques, em janeiro deste ano os Estados Unidos e o Reino Unido iniciaram ataques aéreos a alvos Houthi no Iêmen, o que fez com que o grupo elevasse o tom. Os rebeldes iemenitas agora ameaçam sabotar os cabos submarinos de internet e comunicação que passam pelo Mar Vermelho. Um canal do Telegram ligado aos Houthi publicou um mapa dos cabos que estão no leito marítimo daquela região, acompanhado de uma mensagem que reiterava a importância estratégica do Iêmen para as telecomunicações internacionais.

Ao longo das últimas décadas, testemunhamos uma expansão sem precedentes na conectividade global, impulsionada por cabos submarinos e satélites de comunicação. Os cabos submarinos, que se estendem por milhares de quilômetros pelos oceanos, são as principais artérias que conectam continentes e países e transportam enormes volumes de dados a velocidades impressionantes. Eles formam a espinha dorsal da internet global.

Aproximadamente 17% do tráfego mundial de internet circulam pela região, numa velocidade de cerca de 40GB por segundo, em cabos não muito mais grossos do que mangueiras de jardim, e altamente vulneráveis a danos externos. Em algumas regiões, os fios que carregam quase um quinto das informações do planeta estão a apenas 100 metros da superfície do oceano, de modo que não é necessária grande tecnologia de submarinos para alcançá-los. Cargas de profundidade ou minas subaquáticas dariam conta do recado.

Uma das infraestruturas digitais mais importantes do mundo, que liga uma série de países, pode simplesmente ser rompida a qualquer momento – afetando muito mais do que esses países, mas o planeta todo. O porta-voz dos Houthi, Mohammed Abdul Salam, afirmou que o grupo está disposto a usar novas táticas para impedir o que chamou de “agressão americano-britânica contra o Iêmen”. Estamos prontos para voltar a era do fax?

*João Alfredo Lopes Nyegray é doutor e mestre em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Coordenador do curso de Comércio Exterior e do Observatório Global da Universidade Positivo (UP). Instagram: @janyegray

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