Para quem viaja para a Europa, รฉ comum deparar-se com festas carnavalescas. Em Veneza ou Viareggio, na Itรกlia, em Colรดnia, na Alemanha, em Barcelona, na Espanha ou em Londres, no bairro de Nothing Hill, por onde se passa, hรก festejos, desfiles, mรกscaras, aglomeraรงรตes festivas, alegres. Mas uma coisa se faz notar: quase nรฃo hรก mรบsica. Essa influรชncia musical, essa marca hoje inseparรกvel das folias de Momo, tem a digital da populaรงรฃo negra, que levou para as ruas os batuques, os cantos dos terreiros e, aos poucos, foram definindo uma simbiose entre o brincar e o cantar, entre o desfilar da escola e o ritmo da bateria, composta de agogรดs, frigideiras, tamborins, cuรญcas, tarol e o indefectรญvel bumbo, o mestre da marcaรงรฃo e do compasso na avenida.ย
Desde os tempos do Impรฉrio, a festa carnavalesca de origem portuguesa era o entrudo, uma bagunรงa que remonta ร Idade Mรฉdia e ignorava distinรงรตes sociais e ancestralidades vetustas, misturando os alhos e bugalhos em uma guerra de farinha, รกgua perfumada, ovos e, ร s vezes, lama e outros lรญquidos malcheirosos. Ainda nรฃo havia os cordรตes ou as sociedades carnavalescas. Aliรกs, a popularizaรงรฃo do entrudo foi que acabou gerando a โnecessidadeโ dessa separaรงรฃo, e os mais requintados passaram a brincar no aconchego e na seguranรงa dos salรตes. Quando saรญam, era em cima dos carros, enfeitados para a ocasiรฃo. Enquanto isso, o povo pobre branco e o povo preto pintavam o rosto, vestiam-se de saiotes e molambos e divertiam-se a valer.ย
No fim do sรฉculo XIX, o comรฉrcio interno de escravos, apรณs a proibiรงรฃo do trรกfico africano, trouxe para o Rio de Janeiro milhares de negros baianos, como forรงa de trabalho compulsรณria para as lavouras de cana e de cafรฉ do Vale do Paraรญba ou para os trabalhos urbanos da capital do Impรฉrio. Vieram tambรฉm com suas danรงas, mรบsicas e sotaques prรณprios, mesclando-se aos negros cariocas e ocupando os cortiรงos do centro e do porto. Logo depois, no inรญcio do sรฉculo XX, subiram os morros que circundam a cidade, dando origem ร s primeiras favelas. No entanto, foi no centro, nos arredores da Praรงa Onze, que as baianas quitandeiras e mรฃes de santo, lideradas pela lendรกria Tia Ciata, reuniram artistas e mรบsicos em rodas de samba e quitutes que se tornaram uma marca da cidade e um vetor de desenvolvimento das sociedades carnavalescas. Ali, a mรบsica do carnaval foi gestada.
Um fato fortuito preservou essas festas da violรชncia policial e de seu provรกvel desaparecimento. O presidente mineiro Venceslau Braz sofria de uma ferida na perna, persistente e renitente, e foi a Tia Ciata, benzedeira e conhecedora das ervas e dos chรกs, quem curou o presidente. Em agradecimento, durante seu governo, a polรญcia passou a fazer a guarda das festas, em vez de invadir e depredar. O samba, para sempre, agradece ร bendita ferida do presidente e aos conhecimentos populares da baiana Ciata.
Qualquer pesquisa permite reconhecer, entre os primeiros sambistas brasileiros, nomes como Donga, Pixinguinha, Joรฃo da Bahiana, Heitor dos Prazeres, Sinhรด, Caninha, Didi da Gracinda, Joรฃo da Mata, Mestre Germano e Catulo da Paixรฃo Cearense. Todos frequentadores da pequena รfrica, como ficou conhecida a casa da Tia Ciata e onde nasceu a trilha sonora das festas de carnaval, com sua marca negra, baiana, carioca, africanaย e que atรฉ hoje se atualiza com o axรฉ, forrรณ, funk, entre tantos outros ritmos e cadรชncias. Como diria o poeta Caetano, “O Brasil รฉ um absurdo/ Pode ser um absurdo/ Atรฉ aรญ tudo bem/ Nada mal/ O Brasil รฉ um absurdo/ Mas ele nรฃo รฉ surdo/ O Brasil tem um ouvido musical/ Que nรฃo รฉ normalโฆ”ย
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros