O Brasil estreia uma nova legislação de internação forçada de adultos que fazem uso abusivo de drogas. Apesar de recente, a lei consagra mecanismos superados e contradições insuperáveis. Em harmonia com a Convenção de Nova York, recepcionada pelo Brasil com valor de emenda constitucional, a lei fala em “abordagem multidisciplinar”, “equipe técnica multidisciplinar e multissetorial”, porém, aponta que a internação dependeria apenas de “decisão por médico responsável”, sem detalhar os requisitos e pressupostos, sem estabelecer um procedimento.
Deixou-se de assegurar de modo mais claro os direitos fundamentais incidentes antes, durante e após a internação. Não há previsão de ouvir a pessoa que se pretende internar, nem de revisão das internações. As falhas potencializam a violação de direitos dos pacientes e impõe custos para o Estado, que paga (e muito caro) pelas internações, a despeito da baixíssima eficácia.
Comparativamente, na Irlanda, veda-se indicação de internação por quem não teve contato com o paciente nas últimas 48 horas ou que tenha vinculação com o local de tratamento. Frisa-se que, ao concentrar o poder de internar e manter internado em um único profissional, a nova legislação aumenta exponencialmente o risco de abusos e de conflitos de interesses.
O tema das drogas é cercado por mitos e tabus, o que não autoriza que as políticas públicas de saúde sejam baseadas em mitos ou mesmo fake news. Curiosamente, o texto da lei aponta de maneira expressa que devem ser tomados os “conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações”. Coloca-se em destaque a ciência, mas age-se em sentido contrário.
Para começar, deixou-se de conferir a devida atenção à distinção entre uso e uso abusivo, cientificamente consagrada. Por outro lado, acolhe-se a antiquada diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas, cuja falta de critério científico é consenso entre os pesquisadores. A lei, afinal, não consegue controlar os efeitos das substâncias.
Não bastassem tais equívocos, as novas normas valorizam a abstinência e deixam em segundo plano a redução de danos, na contramão da orientação da Organização Mundial da Saúde, que considera que não adianta tentar eliminar o uso de drogas, é preciso lidar com o uso e minimizar seus efeitos.
Em contraposição ao discurso de cientificidade, retirou-se do ar o acervo de pesquisa (e o próprio site) do Observatório Brasileiro sobre Políticas de Drogas (OBID). Também se esconde do público o III Levantamento sobre Uso de Drogas, elaborado pela Fiocruz, que demonstra a inconsistência do discurso da “epidemia do crack” e confirma que a droga mais preocupante para nossa sociedade é o álcool.
É preciso criticar ainda o caráter repressivo presente na legislação. Há consenso de que a guerra às drogas, pautada por uma lógica repressiva e extirpação do uso, está superada. Ao focar no combate, nem se reduziu o comércio, nem o consumo das substâncias. Pelo contrário, o crime organizado transnacional se fortalece cada vez mais com o mercado ilícito. Ao mesmo tempo, produz-se violência e encarceramento. O Atlas da Violência registra 60 mil homicídios por ano no país, ao mesmo tempo em que temos a terceira maior população de encarcerados do planeta, em grande parte, por crime de tráfico de drogas.
Esperava-se que, no ano de 2019, fossemos capazes de produzir políticas públicas com mais seriedade, guiados pela ciência em vez de “achismos”, moralismos ou ideologias, em especial em tema tão sensível.
A nova lei parte de pressupostos equivocados, e chega em soluções inadequadas e ultrapassadas. A lei sequer segue suas próprias premissas e, sobretudo, se esqueceu da mais importante — enfocar a pessoa em vez da droga. O que se pode esperar, lamentavelmente, são efeitos desastrosos.
*Flávio Bortolozzi, doutor em Direito pela UFPR e professor de Criminologia e Sociologia Jurídica da Universidade Positivo. Gabriel Schulman, doutor em Direito pela UERJ, advogado e professor da Universidade Positivo.