O Brasil se preparava para o segundo turno das eleiรงรตes presidenciais, entre o metalรบrgico socialista Luรญs Inรกcio Lula da Silva e a incรณgnita liberal salvacionista Fernando Collor de Melo, quando a televisรฃo anunciou a queda do muro de Berlim. Era o dia 9 de novembro e o jornalista Pedro Bial, em cima do muro cercado de gente eufรณrica comemorando o fim da parede de concreto e da divisรฃo simbรณlica que separava o โparaรญso” comunista do โinfernoโ capitalista, dizia: โvejo a histรณria acontecendo diante dos meus olhosโ. No entanto, as pessoas que queriam romper o muro, fazer desaparecer o muro, apagar o muro, (mas nรฃo esquecer do muro), nรฃo viam nada disso como a vitรณria do capitalismo, mas como a vitรณria da liberdade contra a violรชncia brutal e desumana do totalitarismo. Mesmo assim, os capitalistas comemoraram como se fosse por eles (e para eles) que o muro caiu. Hรก trinta anos.ย
Hoje, diante dos recordes de desigualdade social, nada do que vemos permite dizer que foi isso que realmente aconteceu. Da mesma forma que a vitรณria das ideias de Collor nรฃo sobreviveram a uma investigaรงรฃo do Congresso, a queda do muro sรณ foi capaz de trazer novas perguntas ao mundo. E agora, sem muro, o que fazer para que a grande praรงa pรบblica abrigue a todos, atenda a todos com o mรญnimo de dignidade? Pois รฉ sabido que os paรญses chamados de comunistas proporcionavam o mรญnimo de bens, embora seja รณbvio que pรฃo รฉ fundamental para a fome mas a fome de ninguรฉm acaba com o pรฃo. Continua com a vontade de criar, expressar-se, viajar, maravilhar-se, discursar, inventar, criticar, manifestar, ou mesmo ficar quieto em seu canto. Acontece que sem o pรฃo, com a barriga roncando, e sem saรบde, com o corpo todo doendo, aรญ as outras fomes se calam. O desafio do mundo รฉ o da liberdade com garantias mรญnimas de uma vida digna. E nesse aspecto hรก ainda muitos muros levantados, muros verdadeiros como os da Cisjordรขnia e da fronteira do Mรฉxico, muros invisรญveis como os que separam a pobreza da cidadania, a cidadania dos serviรงos pรบblicos, os talentos da boa escola, os gรชnios do apoio, os cientistas de verbas e as minorias de reconhecimento.
Hรก trinta anos, o muro de Berlim caiu e um intelectual norte-americano, Francis Fukuyama, disse que a Histรณria havia terminado, que nรฃo haveria mais conflitos capazes de transformar o mundo e que, “agora”, navegarรญamos em um mar de economias liberais contรญnuas, uma marolinha aqui, uma chuva mais forte ali, mas todos os barcos teriam como destino os mesmos portos. E trinta anos depois, nenhuma paisagem รฉ mais conhecida do que a do mar revolto da economia mundial, da ascensรฃo dos governos nacionalistas, dos discursos autoritรกrios contra imigrantes fugidos das guerras em seus paรญses – guerras alimentadas pelas polรญticas armamentistas das mesmas naรงรตes que tentam evitar a entrada dos fugitivos. Tambรฉm hรก fortes ventos no comรฉrcio, com novas medidas protecionistas, sobretaxas, acordos bilaterais, guerra comercial. Tudo aquilo que o capitalismo negava e pregava ser coisa do outro lado do muro. Mas o muro caiu. Mas o muro nรฃo caiu. Ou sรฃo as pedras do muro caรญdo ainda a atravancar o caminho.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica pela UFPR e professor de Histรณria no Curso Positivo.