Minha grande dificuldade com a religiรฃo vem de menino e da estratรฉgia usada por minha mรฃe e meus avรณs de me ensinarem que Dโus era cruel e que eu devia teme-lo. Ora, para que isso? Temer, eu jรก temia meu pai, que costumava usar o cinto e gritar bem prรณximo do meu rosto por qualquer coisa que eu nem sabia que fazia. Com um cotidiano desses, por que eu ainda iria temer Dโus? “Porque se vocรช fizer coisas erradas, vocรช serรก castigado e nรฃo viverรก no cรฉu com ele”, diziam-me. Pois muito que bem, que seja, eu dizia, resoluto. Mas o mal jรก estava feito. O medo estava inculcado.
Mais tarde, mas ainda menino, aprendi que esse mesmo Dโus havia criado tudo o que existe e tambรฉm criou o homem e a mulher. Porรฉm, depois, brigou com esse homem e essa mulher – o que nรฃo me surpreendeu em nada – e os expulsou do lugar que tinha criado para eles. Eu nรฃo entendia essa raiva. Na minha cabeรงa de crianรงa, essa raiva era como uma sombra que aparecia do nada, mudando o rosto das pessoas, como se algo lรก de dentro, um gosto ruim, tirasse essas pessoas do sรฉrio e elas entรฃo olhassem para as outras com medo que descobrissem tudo, e partiam apavoradas para cima delas, com cinto e com gritos.
Nessa mesma รฉpoca, eu jรก sabia que esse D’us era de um poder inigualรกvel e sabia tudo e podia tudo e estava em todos os lugares. Agora imaginem isso: como uma crianรงa comum, sem nenhuma genialidade particular, poderia compreender que alguรฉm pudesse ter criado tudo, pudesse estar em todos os lugares e, mesmo assim, ter tempo para ficar brabo com essas duas criaturazinhas que comeram uma fruta sei lรก o quรช?
Enfim, em algum momento entre a infรขncia e a adolescรชncia, aprendi tudo o que aprendemos sobre esse Dโus e fiquei na mesma. Ou melhor, tomei posiรงรฃo: nรฃo gostei Dele como nรฃo gosto de ninguรฉm que promete castigo. O poder nรฃo estรก onde estรก a violรชncia ou sua ameaรงa. O poder se encontra no encontro. Quem manda รฉ um sofredor; quem exige obediรชncia nรฃo entende nada de pessoas, mesmo tendo-as criado.
O mais decepcionante nessa histรณria de Dโus รฉ que o mais importante e sobre o qual Ele deveria ter o maior cuidado, era Sua criaรงรฃo. E nรฃo apenas nรณs, mas todo o resto. Principalmente todo o resto. Um criador que nรฃo para de reivindicar sua obra รฉ, para dizer o mรญnimo, uma pessoa muito insegura. Entรฃo, por que devemos olhar o quadro mas ter de admirar ainda mais o pintor? E por exigรชncia dele? A admiraรงรฃo รฉ um assombro, eu sei, mas hรก os assombros que fascinam e os que amedrontam. E nunca usamos a palavra admiraรงรฃo para descrever esse รบltimo sentimento.
Esse Dโ us que cria pegadinhas, que dรก a capacidade de observar mas nรฃo de tirar conclusรตes, de sentir mas nรฃo se arrepiar, de desejar mas nรฃo usufruir, lembra-me muito meu pai e sua cinta e seus gritos, que sofria com a vida que tinha e se consolava aterrorizando nossas vidas de crianรงas desinformadas. Nem preciso dizer que, em algum momento, tambรฉm me senti assim, adulto, insatisfeito nรฃo com a minha criaรงรฃo, mas por nรฃo ser adorado como eu achava que devia ser. Nessas horas, agimos como deuses, querendo impor tudo, exigir tudo, mudar tudo e todos para que notem nosso poder e nรฃo notem nossa tristeza, nosso desespero. Demorei para perceber isso.
Depois disso, construi a convicรงรฃo de que esse Dโus era tรฃo pequenininho de carรกter que, diante da iniciativa de suas criaturas em experimentar a fruta do conhecimento, abandonou-as e sumiu no universo. E entรฃo ficamos sozinhos d’Ele mas, para piorar, sem saber disso. E, por isso, muitos de nรณs ainda hoje ficamos olhando pra cima, ensimesmados, esperando a prรณxima cintada. Uma pena, porque enquanto isso, as รกrvores do conhecimento minguaram, porque quase ninguรฉm existe mais para espalhar suas sementes, e muitos de nรณs deixamos de saber como รฉ viver sem essa dependรชncia do castigo. A obra, nรฃo soubemos amรก-la, e ainda estamos, aqui e agora, tentando imitar esse Dโus criador: gritando uns com os outros, desconfiando e desejando que um dilรบvio venha e acabe com tudo. Para que entรฃo Ele volte e repita tudo de novo. Pรฉssima ideia, acreditem. Pรฉssima ideia.
* Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.