Daniel Medeiros*
Quando Descartes afirmou que somos cogito, isso รฉ, uma coisa pensante, e o resto era matรฉria, extensรฃo, dados a serem coligidos por essa mente e que sua funรงรฃo no mundo era conhecรช-lo, fundou-se a solidรฃo humana universal. Estamos em um corpo, mas nรฃo somos esse corpo, afirmava Descartes. Aliรกs, desse corpo precisamos evitar suas interferรชncias, as coisas que o afetam e distraem a mente, a รบnica que realmente interessa. A essas interferรชncias, Descartes deu o nome de “paixรตes”.ย
E como sabemos que temos essa mente e que ela รฉ quem diz ser? Porque falamos. Nossa linguagem รฉ a expressรฃo da existรชncia da Razรฃo. Ou seja: Descartes emulou o deus ex machina dos antigos e garantiu aos homens o direito adรขmico de nomear todas as coisas e dizer o que elas sรฃo e para que servem. E, entรฃo, publicou o Discurso sobre o Mรฉtodo, que comeรงa dizendo que a razรฃo รฉ a coisa mais comum que existe, porque todo mundo tem, mas que as pessoas nรฃo sรฃo capazes de conhecer apenas por possuรญrem razรฃo. Para isso, precisam aprender a usรก-la. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois disso.
Uma coisa curiosa aparece nesse texto de Descartes, possivelmente para distrair os olhares da Igreja: toda essa razรฃo sรณ รฉ capaz de conhecer porque Dโus รฉ bom e Ele nรฃo daria ao homem a capacidade de conhecer para simplesmente enganรก-lo, como se fosse um gรชnio bobo e maligno. Engenhosa a saรญda de Descartes: se Dโus existe, o homem รฉ capaz de conhecer o mundo. Se o homem nรฃo รฉ capaz de conhecer o mundo, entรฃo รฉ porque um gรชnio maligno o engana. Mas se hรก um gรชnio maligno, como pode existir um Dโus bom, Criador de todas as coisas? Afinal, do Bem sรณ pode advir o bem, nรฃo? Touchรฉ.ย
A Ciรชncia nunca parou de agradecer a Descartes essa liberdade de calcular, de medir e de comparar o universo, de deduzir a verdade a partir do conceito de claro e evidente, de demonstrar como a mรกquina corpo e o corpo universo sรฃo e como funcionam. E a Ciรชncia nรฃo parou de fazer isso com tudo o que havia pela frente, tornando a palavra โcientรญfico” sinรดnimo de โverdadeiroโ. Mas hรก um detalhe nas reflexรตes de Descartes que, ร s vezes, รฉ esquecida: o que eu afirmo implica, necessariamente, nรฃo afirmar muitas outras coisas. E elas permanecem aรญ, gerando efeitos cada vez mais estranhos para a nossa racionalidade. Freud que o diga.
Poucos anos depois de Descartes morrer, Spinoza, grande admirador da sua obra, apresentou outra versรฃo para a Razรฃo: ela nรฃo era รบnica, capaz de criar e de explicar a si mesma, legitimada por um Dโus bom. Ela era, como todo o resto, um atributo desse Dโus que, esse sim, era a รบnica substรขncia. A grande mudanรงa foi devolver corpo e mente ao mesmo status, como atributos de uma mesma substรขncia, de um sรณ Ser. E tambรฉm o mundo, os bichos, as plantas, o ar, as รกguas, as rochas, os ventos, tudo como expressรฃo de um Ser que รฉ tudo isso, junto e misturado: Dโus, isto รฉ, a Natureza. A ideia de realidade com Spinoza modificou-se inteiramente, apesar de seu pensamento partir dos textos de Descartes.ย
E nรณs, o que temos com isso? O que muda no nosso modo de ver e de agir sobre o mundo e sobre as outras pessoas se curtirmos o perfil cartesiano e cancelarmos Spinoza? Ou vice-versa? Haverรก impacto sobre nossa crenรงa sobre o certo e o errado, sobre o valor das pessoas e dos animais, sobre a consciรชncia sobre nosso prรณprio corpo e sobre o corpo alheio? Essa รฉ a ideia desse texto. Pensar sobre isso. Bon appรฉtit.
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
ย
**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.