Daniel Medeiros*
É comum dizer que não é possível corrigir um erro, assim como não é possível devolver para o revólver a bala disparada. Um erro é algo que se concretiza na realidade de outra pessoa, afetando-nos a partir das consequências que ela sofre. É uma espécie de efeito bumerangue. Ou como diz o ditado sobre a raiva: “Um copo de veneno que você toma esperando que mate outra pessoa.” Somos atingidos não pelos atos que praticamos, mas pelos danos que eles provocam. Por isso, só é possível reparar algumas das consequências dos erros. E assumir a promessa de não repetir. E não repetir é uma decisão complexa, difícil, pois, no mais das vezes, agimos de um certo modo porque nos dá uma satisfação muito particular fazê-lo assim. E queremos (mesmo sem o querer conscientemente) retornar a essa sensação prazerosa. Por isso erramos – e depois erramos de novo -, e ainda mais uma vez, e quando buscamos nos justificar, dizemos: “Eu não sei por que faço isso.” Sabemos. Porque é bom. Mas tem consequências.
Ao longo da vida, conseguimos identificar vários erros que cometemos. Outros tantos escapam – parcial ou completamente – porque perdemos o rastro das nossas “vítimas”. Das que são próximas ainda somos capazes de distinguir as cicatrizes que produzimos. Quando nos cobrimos de vergonha e remorso, sabemos que chegamos a algum lugar, pois estamos conseguindo superar o desejo de repeti-los. Nosso mal-estar é nossa vitória, fruto de um olhar sério e compenetrado em nós mesmos, em nossos afazeres no mundo, em nossos parâmetros de estabilidade diante do outro. Perguntamo-nos: “Preciso estar com esta ‘estaca’ apontada para o coração alheio? Qual a necessidade deste sangue em minhas mãos?” Na selva frenética de nossas ações disparatadas, quando esses pensamentos se impõem, sabemos que estamos conquistando algo muito importante.
“Errar é humano”, diz o brocardo. Gosto do meme que coloca um “h” na frente do errar e faz a afirmação ficar ainda mais destacada. Não há imunidade contra o erro, porque ele é uma das interfaces do desejo – e o desejo é indestrutível. Erramos. É assim. Não há como evitar de todo. Resta-nos, então, escolher como conviver com os efeitos de nossas ações, que é a convivência com os outros danificados por elas. Torcemos pela capacidade de esquecimento dos afetados pelos nossos erros – que é um descaso com a própria memória da dor, ou, pior, um afastamento involuntário dos seus efeitos insuportáveis – ou torcemos pela capacidade mais sofisticada do perdão, que é um não-esquecer, mas um aceitar-aquele-que-fere-apesar-de.
Nestes nossos tempos, a satisfação de apontar o dedo para os erros (presentes e passados) e desclassificar a pessoa do convívio comum tem funcionado como uma droga leve que faz sucesso em quase todos os ambientes. Temos vivido em um estado de prontidão contra palavras e gestos, e tomados de uma fúria interpretativa e identificadora do “possível erro”, condição suficiente para o exercício gozoso do apertar o botão do “cancelamento”. Por causa disso, todos os dias aparecem nos muros das cidades os corpos pendurados em gaiolas suspensas dos vetados do convívio por qualquer coisa dita como “inaceitável”, mesmo para aqueles que sequer estavam diante do alvo do gesto. Não importa. Não há mais um cuidado em olhar para quem erra, mas tão somente para as curtidas da repercussão da minha recusa.
Vemo-nos diante desse espaço de reverberação que ignora pessoas, reflexões, arrependimentos e mudanças sinceras de posturas. Só importa o que um dia foi feito e que pode ser jogado como alimento no poço das fúrias sempre dispostas à vingança. A nós, que cometemos erros, cabe suportar. Ou resistir por meio da palavra fundadora de novos gestos.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
**Artigos de opinião assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do Curso Positivo.