Daniel Medeiros*
Recente pesquisa feita pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)ย mostra que pouco mais de 4% dos brasileiros confiam uns nos outros. Hรก apenas um ano, esse รญndice era de 7%. Ou seja, parece que ninguรฉm espera nada de ninguรฉm por aqui. Esse resultado afeta fortemente a ideia de paรญs solidรกrio que desenvolvemos no nosso prรณprio imaginรกrio e que se manifesta a cada tragรฉdia provocada pela falta de capacidade de gerenciamento e fiscalizaรงรฃo do poder pรบblico e que resulta em barreiras que rompem, casas que deslizam de morros, boates cujos tetos de espuma pegam fogo. Nesses casos, logo surgem os voluntรกrios com fardos de roupas e รกgua e com seus prรณprios corpos no barro ajudando os bombeiros a resgatar os cadรกveres de incautos que nรฃo puderam contar com a competรชncia de um gestor capaz de honrar os impostos que pagaram.
Confiar, como sei de meu minguado conhecimento etimolรณgico, vem de ter fรฉ, estar com fรฉ, depositar fรฉ em algo ou alguรฉm. Fรฉ รฉ esperanรงa em algo. Esperanรงa vem de esperar, no sentido de aguardar algo que se crรช que venha, como o amigo que marcou o encontro ou o dinheiro do serviรงo que foi feito, ou o atendimento mรฉdico no posto de saรบde, ou a luz e a รกgua na casa que se compra ou aluga, ou a escola e a seguranรงa no bairro em que mora. Fรฉ em D’us que Este nรฃo vai faltar. Nรฃo faltar no sentido de Dโus socorrer quando houver urgรชncia. Urgรชncia que รฉ o momento de nรฃo poder mais esperar. Desesperar. Momento de afliรงรฃo. E nesse momento, confiar que algo ou alguรฉm virรก em socorro. E isso รฉ tudo o que brasileiro nรฃo sente pelo outro, segundo a pesquisa.
No clรกssico dos anos 30, Raรญzes do Brasil, Sรฉrgio Buarque compรตe o conceito jรก tantas vezes utilizado, de que o brasileiro รฉ um โhomem cordialโ. Curioso como parece um elogio, uma marca de identidade que gostamos de mostrar, como as covinhas no rosto de uma crianรงa. O que o pai do Chico quis dizer, no entanto, รฉ que o brasileiro age com o coraรงรฃo e isso quer dizer que o brasileiro quando faz, nรฃo รฉ por obrigaรงรฃo determinada por uma regra comum, mas por algo que o toca, emociona. Ou, faz pelos seus, amigos e familiares. Como aquele prefeito que furou a fila, vacinou a esposa e depois, emocionado, disse que agiu por amor. Ou o governante que emprega o filho ou o irmรฃo e diz โque se trata de um cargo de confianรงa e nรฃo hรก ninguรฉm em quem eu confie mais do que na minha famรญliaโ. Cordialidade. O assassino que chora quando ouve a voz da filhinha; o ditador que afaga carinhosamente a cabeรงa do cรฃo de estimaรงรฃo; o corrupto preso que fica inconsolรกvel diante das cรขmeras, porque estรก decepcionando os filhos. Somos, por outro lado, incapazes de esperar que as coisas aconteรงam em razรฃo de uma regra de funcionamento comum, de um combinado que nรฃo dependa de quem vai executรก-lo. Que funcione porque foi assim que se convencionou e nรฃo porque alguรฉm pediu um favor por amizade ou prometeu algo em troca, como uma aรงรฃo entre parceiros.ย
Atรฉ para eleger, acreditamos que deve haver uma pessoa que รฉ a โรบnica” capaz de, e nรฃo um conjunto de ideias representados por um programa de um partido. A ideia de partido no Brasil acabou no inรญcio da segunda metade do sรฉculo XIX, para frustraรงรฃo do Visconde do Uruguai. De lรก para cรก, a ideia de um projeto para o paรญs tornou-se nรฃo mais do que uma desculpa para alavancar candidaturas personalistas alimentadas pela esperanรงa de atendimento de urgรชncias pessoais ou de grupos identitรกrios. E todos, no poder, vรฃo consolidando suas โbases eleitoraisโ por meio dos favores: o morro sobre o qual ninguรฉm deveria morar torna-se entรฃo uma concessรฃo do governante que atende a um pedido e libera โprovisoriamente” atรฉ que outra soluรงรฃo seja encontrada. E o mesmo ocorre nas margens dos rios e em todos os lugares onde nรฃo รฉ possรญvel morar ou construir, e รฉ assim tambรฉm com todos os cargos que deveriam ter um especialista mas tรชm um correligionรกrio porque alguรฉm deu um jeitinho e atendeu a um pedido de alguรฉm. Atรฉ que dรช problema. E aรญ, espera-se que alguรฉm dรช um jeito. Ou desespera-se com as consequรชncias. Crรดnica de tragรฉdias anunciadas.
Na pesquisa do BID, os paรญses nos quais as pessoas tรชm mais confianรงa umas nas outras e tambรฉm nos รณrgรฃos coletivos sรฃo exatamente aqueles onde hรก Estado atuante e sociedade fortemente educada para a vida pรบblica. Segundo a pesquisa, โa Amรฉrica Latina tem menor seguranรงa em instituiรงรตes, como o sistema judicial e nos militares e nas eleiรงรตes”. A fรฉ no estado de direito รฉ tida por 44,8% dos latino-americanos, ante 86,12% nos paรญses membros da OCDE. Ou seja, nas democracias maduras, como a Alemanha, Franรงa, Grรฃ-Bretanha, Suรฉcia, Noruega, Dinamarca, entre outros.
A soluรงรฃo parece-me clara: precisamos desesperar. Precisamos assumir o sentimento de urgรชncia e mesmo de fรบria por mais transparรชncia, previsibilidade e obediรชncia aos pactos coletivos. Precisamos reafirmar nosso contrato social e, com os dentes arreganhados e os olhos injetados, dizer em alto e bom som: vamos fazer isso funcionar direito. Sem jeitinho e sem arranjo, sem desvio, conversa reservada, cartรฃo corporativo e emendas parlamentares secretas, sem realocaรงรฃo de verbas da saรบde, educaรงรฃo, ciรชncia, proteรงรฃo ambiental, sem um sistema eleitoral que facilite tudo isso, sem um modelo de ensino que sequestre a cidadania dos jovens.ย
Ao contrรกrio do que se pensa, a saรญda nรฃo รฉ nem o aeroporto nem o salรฃo de festas do condomรญnio privado. ร uma praรงa pรบblica.ย
Brasileiros e brasileiras, desesperai-vos!
*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
**Artigos de opiniรฃo assinados nรฃo reproduzem, necessariamente, a opiniรฃo do Curso Positivo.