Banco de imagem*Por Maristela R S Gripp
A literatura sempre foi palco de conflitos. Na Idade Média, o acesso à leitura era um privilégio dos nobres e dos religiosos, que guardavam a sete chaves os livros que não deveriam chegar às mãos de qualquer pessoa, pois havia o risco de rebelião das massas ao descobrirem, por exemplo, que o acesso ao paraíso era pela fé e nada mais. A Bíblia foi um livro lido por poucos até que a Reforma Protestante aconteceu (Bons tempos!).
Na 2ª Guerra Mundial, vários livros foram proibidos ou queimados. Infelizmente, não faz muito tempo, essa antiga prática voltou a ser adotada por indivíduos contrários à liberdade de expressão. Lamentável!
O caso ocorrido, recentemente, foi numa escola em Salvador com o livro “Amoras” do rapper Emicida, que em seu livro, apresenta de forma bem didática para crianças alguns personagens das religiões de matriz africana. É uma narrativa linda e cheia de empoderamento racial. Na segunda-feira (06), uma mãe, dizendo-se evangélica, rasurou várias páginas do livro e anotou nelas passagens dos Salmos. Isso me fez relembrar todos esses momentos da história da humanidade. A intolerância e o repúdio aquilo que desconhecemos ou consideramos “errado” vem se tornando uma prática nefasta da sociedade brasileira. Após toda a repercussão do caso, não pude deixar de pensar no sucesso estrondoso que os livros do Harry Potter fizeram desde a sua 1ª publicação em 1997. A história do menino bruxo, órfão, filho de bruxos e criado pelos tios trouxas, se tornou um sucesso mundial criando um verdadeiro império milionário para a sua autora! Ao longo dos anos, foram várias estreias de filmes que são reprisados até hoje na TV. O embate mortal entre o jovem bruxo do bem contra o “aquele cujo nome não devemos mencionar” criou uma legião de fãs entre crianças e adultos até hoje.
Mas o que isso tem a ver com o nosso Emicida?
“Bem, escrever sobre magia negra, feitiços, bruxos e aula de feitiços contra ataques das trevas, pode! Claro! Cultura ocidental, europeia e branca é coisa fina! Ao contrário dessas ‘esquisitices’ de pretos velhos e escravizados africanos no Brasil! Imagina levar essas crendices para as salas de aula?! Que horror! Ainda mais se for pra tratar de religião um tema já tão mal compreendido!”
E se formos olhar para esse episódio com um pouco de isenção, veremos bem claro a raiz de tudo: o velho racismo disfarçado de zelo pela religião. O Brasil herdou o catolicismo e o protestantismo de europeus e americanos, ao longo da sua história. Com isso, decidiu demonizar tudo aquilo que vinha dos africanos escravizados, principalmente, a religião africana e as suas manifestações.
O cantor Emicida é preto e praticante de uma religião de matriz africana. Nada mais justo do que ele tratar de um tema que faz parte da sua vida e da sua prática religiosa. Mas é justamente isso que gera toda a intolerância por parte de algumas pessoas! Na mesquinhez das suas mentes, não pode existir nenhum outro modo de se chegar a Deus, a não ser pelo modo que ela conhece e aceita como sendo o certo! Dar espaço para se falar sobre as religiões de matriz africana põe em risco o status quo dessas almas empobrecidas, cuja única leitura permitida deve ser a bíblia. Vivem num mundo à parte, sonham com anjos loiros e um Cristo branco como as pinturas do Renascentismo.
Ao fim e ao cabo, voltamos sempre a mesma fonte que dá origem a maioria dos males do nosso país: o racismo estrutural que não nos deixa crescer como um país livre e de mentes pensantes. A repulsa a tudo que nos remete ao nosso passado escravagista e à herança negra que nos constituiu enquanto nação, ressurge a cada evento como o vivido pelo rapper Emicida. Enquanto estamos preocupados em legislar sobre a fé do outro, o racismo avança matando e destruindo vidas e famílias, seja num supermercado ou na literatura. Até quando vamos aguentar isso? As pedras já estão clamando!
* Maristela Reis Sathler Gripp, Professora da área de Linguagens e Sociedade- Curso de Letras UNINTER. Doutora em Estudos Linguísticos