Marco temporal

ย  ย  ย  ย  ย  ย  ย  ย Daniel Medeiros*

 

Quando cheguei aqui, tudo me estranhava. Tinha dezessete anos e sonhava com um futuro que exigia um outro lugar. Mas esse lugar, agora, era apenas um conjunto de fotos pequenas e um mar de lembranรงas que inundavam minha mente e provocavam sensaรงรตes inquietantes no meu corpo de jovem assustado.

Depois de quarenta anos, ainda sou de lรก. Se separassem o paรญs, estaria em terra estrangeira, exigindo passaporte da cor de minha pรกtria de origem. E nรฃo se trata deย  ingratidรฃo: รฉ que esses sentimentos ficam incrustados na alma, misturam-se a eles, รฉ impossรญvel separar, decantar, esquecer. Nenhum marco temporal รฉ legรญtimo para definir de onde eu sou. Mesmo que mais de dois terรงos de minha vida eu tenha vivido aqui, e meu filho seja daqui, e meu trabalho, minha casa, a maior parte de minhas memรณrias, sou uma alma originรกria do lugar onde primeiro conheci a amizade, a raiva, a privaรงรฃo, o gosto acre do caju verde tirado do pรฉ, do tamarindo que enruga a boca, da jaca doce e oleosa, da imagem do coqueiro sob o cรฉu azul profundo, de meu rosto de crianรงa banhado pela brisa salgada do mar, dos passeios adolescentes pela praรงa cheia de gente, misturando-me ร queles sons e cheiros, do cinema toda sexta ร  noite, onde viciei minha imaginaรงรฃo para sempre, dos teatros e shows de cantores com voz rasgada ao som de violรตes ibรฉricos e ciganos, do primeiro amor danรงando com a menina que tinha um colar com uma pedrinha azul.

Um lugar รฉ um espaรงo sentimentalizado, um depรณsito das experiรชncias formadoras do nosso eu reconhecรญvel, que sรณ existe porque existe a memรณria de sua trajetรณria. Nรฃo hรก como dizer quando uma pessoa passou a ser de um lugar ou quando esse lugar pertence ou nรฃo a ela. O que explica essa tentativa de definir um marco temporal de pertencimento nรฃo รฉ uma busca por demarcar direitos, pelo contrรกrio. Sรณ o interesse vil justifica definir um tempo especรญfico para permitir a alguรฉm reivindicar ser de um lugar. E o interesse vil nรฃo poderia ser fundamento para nenhuma Justiรงa. Alegar “seguranรงa jurรญdicaโ€ para separar as pessoas do perfume de suas terras, da memรณria de seu passado e do passado daqueles que vivem na sua memรณria รฉ uma forma de violรชncia corporal. E esse tipo de violรชncia nรฃo poderia ter uma defesa jurรญdica nunca. Alegar o direito daqueles que vieram depois e construรญram suas vidas no mesmo lugar, tornando-as suas tambรฉm รฉ como tornar legรญtima a pretensรฃo dos que se apossaram das casas daqueles que foram expropriados e mandados para os campos, porque, afinal, nรฃo tiveram culpa pelo que aconteceu ร queles infelizes e, enfim, um erro nรฃo corrige o outro. Isso atรฉ seria possรญvel de ser pensado se muitos nรฃo tivessem resistido ร s maldades dos campos e nรฃo tivessem sobrevivido, como pessoas e como povo. Sรฃo essas pessoas e esse povo, como um exรฉrcito de orfeus, que agora gritam: quero o direito ao meu lugar, ao meu canto, ao meu quinhรฃo de lembranรงas inalienรกveis e infungรญveis.

Caetano Veloso disse que farรก uma รบltima turnรช internacional e depois voltarรก para a Bahia e cantarรก apenas por lรก. Todo canto รฉ o canto da nossa terra. Todo canto รฉ o canto para a nossa terra. Todo canto exige um canto para se expressar. Na minha cabeรงa, diariamente, minhas paisagens acolhedoras sรฃo as do quintal da minha infรขncia, da rua da minha vila, dos arredores do meu bairro, das praรงas da cidade onde cresci e conheci pela primeira vez a ambiรงรฃo de viver que ainda me move. Nรฃo sou ingrato ao lugar onde vivo, pelo contrรกrio. Por isso, estou aqui. Mas nรฃo desaparecerei, espero, sem ainda uma vez, ouvir os cantos de lรก. Todos precisam ter direito a esse projeto. Ou entรฃo nรฃo podemos dizer que vivemos em um paรญs de verdade.

*Daniel Medeiros รฉ doutor em Educaรงรฃo Histรณrica e professor de Humanidades no Curso Positivo.

@profdanielmedeiros

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