Os sarcomas representam cerca de 1% dos tumores diagnosticados anualmente
e possuem cerca de 100 subtipos; faltam no Brasil centros especializados para o tratamento desses pacientes
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein
“Eu tinha uma vida comum e ela passou a ser extraordinária após a descoberta do sarcoma.” Foi com essas palavras que a auxiliar em contabilidade Patrícia Figueiredo, 35 anos, descreveu como foi receber o diagnóstico de sarcoma – o termo utilizado para definir um conjunto de tipos raros de câncer, com cerca de 100 subtipos, que atingem especialmente ossos e partes moles, como músculos, células de gordura, cartilagens e vasos sanguíneos. Eles representam cerca de 1% dos casos de tumores sólidos descobertos anualmente.
Os sarcomas são tumores das células mesenquimais, que são as de apoio e suporte físico e estrutural ao nosso corpo, como músculo, gordura e ossos. Em geral, eles surgem nas extremidades (pernas e braços), no retroperitônio (entre os órgãos abdominais) e nas paredes torácica ou do abdômen. A doença pode acometer pessoas de qualquer idade. Alguns subtipos que afetam os ossos são mais comuns na infância e adolescência, enquanto outros subtipos, especialmente os sarcomas de partes moles, em sua maioria, atingem mais os adultos acima de 50 anos.
A doença é tão incomum e difícil de ser diagnosticada que sua incidência não é registrada pelo Globocan (Global Cancer Observatory), pelo Cancer Incidence in Five Continents (CI5) e nem pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca). As estimativas de casos novos são baseadas em registros de câncer de países desenvolvidos, como os Estados Unidos e algumas nações da Europa, o que complica ainda mais o controle epidemiológico da doença. A literatura estima que até um quarto dos diagnósticos (25%) sofrem atrasos ou estão errados por causa da dificuldade de identificação correta do subtipo do tumor – e isso tem um impacto direto no tratamento do paciente.
A auxiliar em contabilidade é um exemplo de dificuldade diagnóstica inicial, o que afetou a conduta do seu tratamento. O seu primeiro sintoma foi um sangramento menstrual intenso, com a perda de coágulos, que não cessava e lhe causava dores fortes. Após consultar seu ginecologista, ela foi diagnosticada com miomas no útero e recebeu a recomendação de retirada do órgão. Depois da cirurgia, as dores passaram e ela conta que ficou aliviada por poder retomar a rotina. Como de praxe, um fragmento do útero foi enviado para biópsia e a conclusão do material surpreendeu a todos: ela tinha um sarcoma, que foi classificado inicialmente como de baixo grau.
“Quando perguntei se isso era câncer, o médico balançou a cabeça dizendo que sim. Nesse momento, eu soube que aos 34 anos, com dois filhos pequenos, que tinha um câncer raro, que representa menos de 1% dos casos. Não conhecia ninguém com a mesma doença e meu médico não sabia muito bem como conduzir o tratamento, por ser algo extremamente raro. Comecei a chorar. Mas minha fé é inabalável, independente do que o papel diga”, conta Patrícia. O ginecologista a encaminhou para iniciar o tratamento com um oncologista no sistema público de saúde, em um hospital de referência em câncer no interior de São Paulo.
Mas foi justamente a classificação equivocada do tipo de sarcoma dela que atrapalhou a conduta médica e fez o câncer avançar rapidamente. De acordo com Roberto Pestana, oncologista clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e pesquisador da Equipe de Sarcoma do Grupo Cooperativo Latino-Americano de Oncologia (Lacog), como são tumores muito raros e há poucos dados disponíveis sobre esse tipo de câncer no Brasil e no mundo, ainda existem dificuldades para o diagnóstico.
“Isso faz com que a história desses pacientes envolva, em geral, um tempo longo entre os sintomas iniciais e até ele procurar um médico. Depois disso, pela raridade dos tumores, muitas vezes o diagnóstico de sarcoma não é considerado. E, por serem tumores raros, quando o exame é enviado para biópsia, há o risco de erro: são mais de 100 tipos, muitas vezes semelhantes entre si no microscópio. O diagnóstico final ainda pode depender de testes moleculares adicionais, que nem todo lugar faz”, explica o oncologista.
Segundo Pestana, a demora na identificação correta da doença pode fazer o paciente perder um tempo que é extremamente importante para o controle da doença. “Cada passo da jornada desse paciente é um desafio. Muitas pessoas nunca ouviram falar de sarcoma, então é difícil até saber onde elas podem receber o tratamento”, ressalta.
Com o diagnóstico de sarcoma de baixo grau, Patrícia foi orientada a apenas monitorar a evolução da doença. Entre idas e vindas, ela voltou a sentir fortes dores abdominais e novos exames mostraram um pequeno nódulo no pulmão, outro no abdômen, outro no retroperitônio, o que indicava metástases. Ela foi encaminhada então para o serviço de cuidados paliativos do hospital e começou a usar uma medicação hormonal oral. “Após o início da medicação, os nódulos dobraram de tamanho e eu continuei com dores absurdas.”
Diante da piora do quadro clínico, a jovem resolveu ouvir uma segunda opinião, repetiu os exames, refez a análise patológica do tumor e descobriu que tinha sim um sarcoma, mas ele não era de baixo grau – era um tumor de alto grau, estágio 4 (mais agressivo e já avançado). Um PET scan mostrava mais de 20 nódulos somente no pulmão. “Eu parecia um dálmata, de tantos pontos pretos”, diz. Foi preciso mudar completamente a conduta do tratamento, com o início imediato de ciclos de quimioterapia a cada 21 dias. Cinco dias após o início, já havia a melhora dos sintomas. No terceiro ciclo, o PET scan já mostrava a redução significativa de todos os nódulos.
Poucos centros especializados
Pestana e outros oncologistas fizeram uma ampla revisão de estudos sobre sarcomas publicados nos últimos 30 anos e constataram que existem vários obstáculos que levam ao diagnóstico tardio e à falta de cuidados adequados para o paciente. O trabalho foi publicado na revista médica The Lancet Regional Health Americas.
A pesquisa aponta que, de 1.941 estudos clínicos sobre sarcomas, somente 29 deles estavam disponíveis em países da América do Sul. Considerando os 632 ensaios em andamento atualmente, somente oito incluíam países da América do Sul – menos de 2% do total de pesquisas. Segundo o oncologista do Einstein, essa limitação dificulta o acesso a novos tratamentos e o desenvolvimento de abordagens personalizadas para o tratamento desses pacientes nessa região.
Outro ponto destacado pelo médico é que a literatura mostra que esses pacientes recebem um tratamento melhor e vivem mais se forem tratados e acompanhados em centros especializados em sarcoma, o que praticamente não existe no Brasil e em outros países da América Latina. “Ainda é incipiente essa organização da rede de cuidado, de forma a garantir que os pacientes sejam encaminhados para centros especializados. Em alguns países, especialmente na Europa, existem redes diagnósticas e de tratamento que organizam a jornada desses pacientes e centralizam em locais específicos, o que melhora o desfecho”, reforça.
A auxiliar em contabilidade terminou os seis ciclos de quimioterapia e atualmente faz o acompanhamento do câncer com exames de rotina a cada dois meses. “Entendi o meu propósito por meio da dor. Mas nada seria possível sem a minha rede de apoio familiar e a minha fé. Hoje minha vida é uma folha em branco e escrevo cada página diariamente. Assim como tenho um câncer raro, que representa menos de 1% dos casos, posso dizer que sou o 1% que sobreviveu a ele”, finaliza.
Fonte: Agência Einstein