Por Cleverson Massao Kaimoto*
O modelo que predomina no Brasil para o transporte de cargas é o modal rodoviário, que a partir da década de 1940 se intensificou ainda mais ante o incremento do processo de industrialização no país e o declínio do transporte ferroviário e marítimo no mundo. Mas uma recorrente controvérsia no âmbito da Justiça do Trabalho, ainda gera incerteza jurídica e, em consequência, o receio das empresas na contratação de autônomos nos dias atuais. Vamos contextualizar para que se entenda melhor o assunto.
O sistema rodoviário detém papel de relevante importância no crescimento econômico do país e grandes investimentos foram realizados no setor, influenciando no estabelecimento das atividades industriais e agrícolas nas regiões que detém estrutura viária, graças à possibilidade que o modal oferece de abastecimento por matérias primas (insumos) e escoamento da produção. O transporte rodoviário influencia todos os setores produtivos, como também impacta na arrecadação de impostos e na geração de empregos.
Assumindo este papel central na economia, o Transporte Rodoviário de Cargas tem na figura do transportador autônomo, habitualmente conhecido como caminhoneiro autônomo, um dos principais atores do segmento. E é neste universo de vital importância econômica, social e política que se inserem as relações contratuais dos transportadores, seja na figura de quem contrata o frete, representados pelos embarcadores e empresas de transporte de cargas (ETC) como na do contratado, função desempenhada pelo transportador autônomo de cargas (TAC).
Ambos são submetidos, por um lado, a Lei Federal nº 11.442 de 2007 que considera não haver, em nenhuma hipótese, a caracterização de vínculo de emprego (Lei 11.442, 2007, Art. 5º) e de outro a Justiça Especializada do Trabalho, onde surge o reconhecimento de existência de laço empregatício entre a pessoa ou empresa que contrata o serviço e o trabalhador autônomo. Resulta daí a dúvida: Contratar transportador autônomo de cargas pode gerar relação de emprego?
Conforme exposto anteriormente, a Lei nº 11.442/2007 é federal e regulamenta o Transporte Rodoviário de Cargas, além de disciplinar, entre outras questões, a relação contratual existente entre os atores do setor, caracterizando-a como uma relação comercial, de natureza civil. Dessa maneira, a legislação em apreço, prevê e regula a contratação do profissional autônomo para a realização do transporte, especificamente sem restar configurado qualquer vínculo empregatício.
O Art. 2º e 5º da Lei nº 11.442/2007 prevê referida condição:
Art. 2º A atividade econômica de que trata o art. 1º desta Lei é de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência, e depende de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, nas seguintes categorias:
I – Transportador Autônomo de Cargas – TAC, pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional;
II – Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas – ETC, pessoa jurídica constituída por qualquer forma prevista em lei que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade principal.
Art. 5º As relações decorrentes do contrato de transporte de cargas de que trata o art. 4º desta Lei são sempre de natureza comercial, não ensejando, em nenhuma hipótese, a caracterização de vínculo de emprego.
O nosso ordenamento jurídico estabelece que há presunção juris tantum de constitucionalidade dos atos normativos primários, ou seja, uma lei existe, é válida e eficaz, até que se prove o contrário, o que torna a Lei 11.442/2007 presumidamente constitucional. Porém, consta que da Justiça Especializada do Trabalho colhe-se uma multiplicidade de decisões que ora consideram a aplicação da referida lei, ora não consideram.
Para exemplificar, trouxemos dois julgados que evidenciam a controvérsia. O objetivo é ilustrar, em casos concretos, quando a Lei 11.442/2007 foi aplicada, afastando-se o vínculo de emprego e quando deixou de ser aplicada, havendo, nesta hipótese, o reconhecimento do vínculo empregatício.
TRANSPORTADOR AUTÔNOMO DE CARGAS. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE EMPREGO. LEI 11.422/2007. Evidenciado no caso concreto que a relação jurídica havida entre as partes litigantes é de natureza comercial, submetida aos ditames da Lei 11.422/2007, não há falar-se em reconhecimento de vínculo de emprego, porquanto o reclamante, como transportador autônomo de cargas, assumiu os riscos do negócio. (TRT-3 – RO: 02008201403703004 0002008-39.2014.5.03.0037, Relator: Convocado Jose Nilton Ferreira Pandelot, Turma Recursal de Juiz de Fora, Data de Publicação: 23/07/2015)
RECURSO DA RECLAMADA COMPETÊNCIA. PLEITO DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO DE EMPREGO. LEI 11.442/07. A legislação invocada pela defesa – Lei nº 7.290/84 e Lei nº 11442/07 – se refere às hipóteses de prestação de serviço autônomo de transporte de carga, não tendo o condão de afastar da jurisdição trabalhista a análise e apreciação de pedido de reconhecimento do vínculo de emprego, pela presença de seus pressupostos fático-jurídicos. Rejeito. VÍNCULO DE EMPREGO. A empresa atraiu para si o ônus da prova em relação à natureza autônoma dos serviços prestados e dele não se desincumbiu. A prova produzida confirma a presença de todos os pressupostos fático-jurídicos da relação de emprego. Recurso empresarial a que se nega provimento. MULTA DO ART. 477 DA CLT. A multa do artigo 477 é indevida ante à inteligência do disposto na OJ nº 351 da SDI-I do TST, a qual foi cancelada, mas permanece a ideia central. Recurso provido. ENTREGA DAS GUIAS DO CD/SD. O que fez a n. Julgadora, convencida da ilicitude praticada pelo empregador, foi deferir a antecipação da tutela definitiva, fixando astreintes, buscando garantir a tutela específica da obrigação de fazer, na exata forma prevista no art. 461 e seus parágrafos, do CPC, não havendo qualquer irregularidade ou ilicitude em tal determinação, muito menos a necessidade de se esperar o trânsito em julgado para tanto. Provimento negado. RECURSO DO RECLAMANTE HORAS EXTRAS. SERVIÇO EXTERNO. Não comprovada a situação excetiva do art. 62, I da CLT. Os depoimentos do preposto e da testemunha Luiz Alberto são no sentido de que havia efetiva fiscalização das jornadas, com a pré-fixação pela empresa das rotas a serem atendidas, bem como o controle com a utilização de celular e com a obrigação de estar na empresa no início e no fim das jornadas.. Recurso provido. SALÁRIO PERCEBIDO. Presume-se que o que não era salário, era ajuda de custo, o que atrai a incidência do art. 457, § 2º da CLT, segundo o qual essas são incluídas no salário quando excedam de cinquenta por cento do salário. Recurso a que se dá provimento. (TRT-1 – RO: 7602920125010016 RJ, Relator: Enoque Ribeiro dos Santos, Data de Julgamento: 27/08/2013, Quinta Turma, Data de Publicação: 04-09-2013)
Ao avaliar as diversas decisões que versam sobre a matéria, é possível notar que os Tribunais argumentam que, verificados os requisitos constantes dos Arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), especialmente a subordinação, domina o reconhecimento do vínculo empregatício. Dando voz a aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma, ou seja, a verdade dos fatos impera sobre qualquer contrato formal. Este entendimento culmina em aparente conflito de normas entre a legislação trabalhista mencionada e a lei que regulamenta o transporte de cargas.
De modo que se faz questionar: qual o critério que diferencia o trabalho autônomo e o contrato de emprego, e quando exige a aplicação de uma ou outra norma? Ambas se configuram como prestação de serviços e prestação de mão de obra do trabalhador, porém se faz distingui-las posto que o Direito do Trabalho não se projeta para ambos, mas apenas àquela onde há relação empregatícia.
O Professor Dallegrave Neto afirma que a relação de trabalho “é qualquer vínculo jurídico que tiver como objeto a prestação de serviço de um determinado sujeito a outrem”, conceito que abrange neste caso, a atividade exercida pelo transportador autônomo. Já a relação de emprego, segundo o Professor “é espécie da relação de trabalho e corresponde à prestação de serviço subordinado por uma determinada pessoa física”.
Nessa acepção é possível adotar o critério da subordinação como elemento de diferenciação entre o contrato de trabalho de transporte autônomo e o contrato de emprego. Porém há julgados que remetem a outros critérios para se identificar esta distinção, como a habitualidade e a pessoalidade. Portanto caberia a reflexão acerca da necessidade da conjugação de uma série de pressupostos para a caracterização do contrato de emprego, cuja soma destes elementos fático-jurídicos apresentariam com mais veemência a distinção entre empregado ou profissional autônomo.
De outra parte, extrai-se que mesmo o contrato de profissional autônomo envolve algum tipo de subordinação, na medida em que subsiste, de algum modo, o direcionamento da prestação de serviços pelo tomador. E no desejo de que a atividade contemple as expectativas do contratante, há necessidade, em muitas vezes, da aplicação de comandos (e/ou direcionamentos) por parte de quem contrata, sob pena, até mesmo, da prestação se tornar ineficaz.
E no cumprimento destes direcionamentos se materializa, pela maneira como se desenvolve a atividade, a caracterização de um outro elemento na relação contratual, a chamada dependência. Na esfera do transporte de cargas exercida pelo autônomo, muitas vezes o profissional acaba se sujeitando ao controle do contratante na execução de sua tarefa, tais como cumprimento de hora limite para a realização do frete, forma correta de acomodação da carga, sanção por atraso no descarregamento, entre outros, assumindo, desta maneira, uma posição de hierarquia inferior em relação ao contratante.
Nessa condição, outro aspecto que evidencia essa característica de dependência é no enfoque econômico. O caminhoneiro autônomo muitas vezes desenvolve sua atividade preponderantemente à um determinado tomador, sujeitando-se às regras e diretrizes impostas pela empresa que o remunera, numa condição de certa autonomia, porém mesclada com certo controle.
Nessa seara da relação do trabalho em que transportador autônomo submete-se aos comandos da empresa, no entanto sem se enquadrar com exatidão numa concepção de trabalho subordinado e que, mesmo assim, não vislumbra com perfeição a sua característica de autonomia, nasce um outro conceito que foge da clássica divisão, conhecido como parassubordinação. Uma espécie de gênero intermediário entre o trabalho subordinado e o trabalho autônomo, sendo parassubordinado.
Sendo assim, conclui-se que a controvérsia, aliada a realidade fática do transportador rodoviário autônomo e as intervenções da justiça especializada, está distante do apaziguamento. Para aqueles que defendem a aplicação da lei especial, porque, antes de mais nada, existe diploma normativo específico, a análise da relação contratual sob a ótica do princípio da primazia da realidade sobre a forma, configura negativa de aplicação da norma cogente. O entendimento é que a realidade do contrato do TAC é clara e absoluta e não deveria estar sujeita à um desvendamento por parte do referido princípio, eis que a realidade é uma só, deve ser enquadrada na lei do setor e possui natureza comercial, ainda mais quando preenchidos todos os requisitos nela previstos.
De outra parte, mesmo ante a presunção de impossibilidade de vínculo empregatício, conforme a regra do Art. 5º da Lei 11.442/2007, vimos que dita presunção é relativa e há reconhecimento de relação de emprego quando a relação jurídica entre as partes se enquadra nas disposições dos Arts. 2º e 3º da CLT. Isso porque não raras vezes, a prestação do serviço não conta com a menor margem de autonomia real e efetiva, além da evidente assimetria econômica existente entre o transportador autônomo e a empresa contratante, estabelecendo uma real subordinação daquele às condições impostas para a execução do trabalho.
A complexidade da relação não é exclusiva dos transportadores autônomos, mas avança para todos aqueles que eventualmente prestam serviços com autonomia, tais como representantes comerciais, corretores de imóveis, encanadores, pintores, diaristas, entre tantos outros. Sendo assim, para a conclusão da natureza do contrato de trabalho do transportador autônomo, compreendo que é necessária a análise pormenorizada de cada caso concreto. Ao identificar a realidade fática de cada caso, é possível assinalar o preenchimento dos requisitos para o exercício da atividade na modalidade autônoma, excluindo o contratante da relação de emprego, como também é possível desconfigurar qualquer tentativa de fraude à legislação trabalhista em desfavor do trabalhador.
O debate já está no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A Confederação Nacional do Transporte (CNT) manejou Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 48) questionando a efetiva constitucionalidade da Lei 11.442/2007, especificamente no que tange à caracterização da relação comercial e ausência do vínculo de emprego. A ação foi distribuída ao ministro Roberto Barroso que, em decisão cautelar, determinou a suspensão de todos os processos da Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação de dispositivos da norma que regulamenta a contratação de transportadores autônomos por proprietários de carga e por empresas transportadoras. A medida cautelar está pendente de julgamento pelo plenário do STF.
* Cleverson Massao Kaimoto, OAB/PR nº 23.379, advogado atuando na área de Direito Sindical e Assessor Jurídico da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos – CNTA.